Ensaios Fotográficos

periferias 5 | saúde pública, ambiental e democrática

foto: Abhishek Basu

Ilhas em desaparecimento

Histórias de apagamentos e resistências

Escrito por Joyona Medhi | Fotografia de Abhishek Basu

| ÍNDIA |

traduzido por João Calixto

O nível do mar aumenta à taxa de 4mm por ano. Relatórios climáticos globais afirmam que estamos nos direcionando para o segundo ou terceiro ano mais quente já registrado, com a temperatura média global de Janeiro a Outubro, cerca de 1,1ºC acima da média da era pré-industrial. Ainda importante, é considerar que as tendências de fato pioraram desde o Acordo de Paris (2015), quando os países haviam se comprometido a reduzir as emissões dos gases responsáveis pelo efeito estufa, com o objetivo de estabelecer um limite para o aumento médio da temperatura em 2°C. Ao perceber a proliferação desses terríveis sinais por todos os lados, mesmo que sentados em escritórios climatizados e não cara a cara com um solo que afunda a cada passagem da maré, é impossível não ser provocado com arrepios pela capa da revista Time com Greta Thunberg1Dezembro/2019. Claro que foi antes de que a Covid-19 fizesse com que os flamingos retornassem aos arredores de uma cidade portuária em Mumbai ou até mesmo antes que as águas vivas pudessem nadar tranquilamente pelas águas limpas de Veneza, absolvendo, nós, os humanos, de todos os crimes cometidos até hoje.

Abhishek Basu

Os números e as estatísticas provavelmente vão desencadear aquela maneira demasiado humana, surpreendentemente blasé, de ignorar a gravidade das coisas. Isso se dá, eu sinto, por serem o exato oposto do pulsar, da arte, daquelas emoções que tiram você do eixo quando vê toda uma população sendo deliberadamente dizimada da face da terra, da mesma terra que reivindicam! A falta de terra é igual a falta de rosto que é igual a uma submersão.

E esse é exatamente o contexto em que as Ilhas em Desaparecimento ou o Povo em Desaparecimento vem enfrentando na região do maior delta ativo da Ásia, os Sundarbans. E é por isso que, nesta série de fotos, optamos por uma espécie de arte minimalista inspirada no trabalho lendário do não tão conhecido pintor modernista da década de 70, Vasudeo S Gaitonde, vencedor do prêmio Padma Shri. Existe alguma coisa em seus trabalhos que nossos olhos ficam praticamente obrigados a capturar, em meio a todo caos, cacofonia e irregularidade de suas cores. Algo que acredito ser muito semelhante com a situação do ecossistema ribeirinho frente a devastação do super ciclone Amphan na última quarta-feira. Submergir ou não submergir, metafórica e literalmente, eis a questão. 

Abhishek Basu

O Ciclone Bulbul foi a tempestade mais forte na memória viva dos Sundarbans. Cidades como Mousoni, Sagar e Bakkhali na parte ocidental dos Sundarbans tiveram que lidar com os impactos do Bulbul. Mas Namkhana, Patharpratima e Kakdwip no oeste; Sandeshkhali, Hingalganj, Hasnabad e Basirhat no norte; e Gosaba, Basanti e Jaynagar no leste, também foram afetadas.

Mas lembre-se, o nome Bhanganpally é significativo; "bhangan" significa erosão.

Alguns dos moradores da região disseram que, além de lençóis de lona, arroz e alguns outros utensílios, não receberam nenhuma espécie de assistência após o ciclone, a não ser uma chuva de repórteres que chegaram no dia 20 de novembro, um dia depois da tempestade, e passaram a maior parte do tempo anotando os nomes dos lugares afetados. As pessoas estavam com tanta raiva da negligência do panchayat2NT: Panchayat é um sistema político indiano que agrupa cinco vilas num quincôncio - quatro vilas periféricas que rodeiam uma vila central. Cada uma das vilas possui tarefas e responsabilidades próprias. A vila central, normalmente a maior, organiza p. ex o armazenamento de comida. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Panchayat local – e isso desde muito antes do Bulbul – que prometeram expulsar qualquer representante do governo que chegasse lá daquele momento em diante. 

Enquanto a erosão da realidade material é fruto da inconsequência de alguns, outros são obrigados a viver permanentemente em relação com ela. Peixes, vegetais, arroz e folhas de bétel - eram as quatro coisas que mantinham o sustento no delta. Todas destruídas! Muito similar ao massacre em Marichjhapi (1979) e a fome de Bengala (1943), quando ambos os casos foram abafados pelos governos então em exercício, desta vez também é como se toda manhã ecoasse da estação ferroviária Canning, onde trabalhadores migrantes se arrastam para trabalhar em condições precárias nos distritos e cidades vizinhas de Bengala Ocidental — um berro estridente que convoca nossa atenção.

"Muitos na região vivem da venda de shunkti maachh (peixe seco). Todos os centros de peixe seco próximos, que chamamos de khotis, também foram destruídos" diz, cabisbaixo, Amitava Mondol. Enquanto caminhava de volta para o meu quarto, ele e seus amigos pescadores pareciam pontos na paisagem árida que os rodeava, entreolhando-se.

Para além do nacionalismo do Projeto Tigre implementado na região em 1973 —como as identidades, vozes e narrativas oriundas das fronteiras de nossa terra, como as das silenciadas viúvas dos tigres— podem ser incorporadas nas narrativas do território? O apagamento como uma palavra, um sentimento, uma condição fundante, é algo tão verdadeiro na região que não é preciso enfatizá-lo! 

Sagar, uma ilha no sudoeste dos Sundarbans, exprime-se como uma ferida aberta para a Baía de Bengala, e, assim como Gosaba, sofreu imensamente com o ataque do Ciclone Aila. Em Sagar e na ilha vizinha Mousoni, a terra está desaparecendo rapidamente no fundo do mar. Casas jazem destruídas pelos campos. Árvores foram ao chão. Raízes largas e desordenadas de cabeça para baixo evocam cabeças decepadas. 

Abhishek Basu

Dessa paisagem apocalíptica, outras feridas emergem nas juventudes das aldeias. Feridas como aquelas ranhuras no topo da sua boca, as quais você não consegue deixar de passar a língua. Acredito que os meninos e meninas da região dos deltas em subsidência3Processo de rebaixamento da superfície terrestre com amplitude regional a local por causas tectônicas ou não-tectônicas, como dissolução de camadas sedimentares de sais e de calcários subterrâneos com abatimento das camadas acima das dissolvidas. Fonte: http://sigep.cprm.gov.br/glossario/verbete/subsidencia.htm vão embora por não poderem de fato vislumbrar um futuro e as carreiras que foram condicionados/as a sonhar. Seus sonhos acabam escapando por entre os dedos. Agora, com uma conexão ilimitada no celular, aparentemente têm o mundo inteiro ao seu alcance.

Eles procuram qualquer razão para fechar os olhos ao estado tenebroso que se encontram, seja no sistema público de educação em que estão matriculados de má vontade, na terra salgada e infértil que os rodeia, ou nos bairros vizinhos alagados com água até o joelho. "Eles ficam o tempo todo falando no celular" brinca um morador antigo da cidade de Kumirmari. Parece que é inevitável que os meninos queiram ir embora, mas é surpreendente que mulheres casadas(!) em busca de melhores oportunidades ou do que quer que seja, sejam vistas fugindo dessa evidente erosão — erosão de identidade, da terra, da memória, da cidade, da história, do seu povo!  Ninguém quer morrer como um ninguém. Com quem ela foge, por um desejo de mudança, não importa.

Um ditado para tempos difíceis diz mais ou menos assim: "o corajoso talvez não seja capaz de viver para sempre, mas o cauteloso nem chega a viver." Todos os dias é necessário ter coragem nas Ilhas em Desaparecimento. O simples ato de adentrar um pouco a floresta para pegar caranguejos, decorrente da rápida valorização desses animais no mercado, tirou a vida de Arjun Modal, da cidade de Rajatjubilee nos Sundarbans; na frente de seus dois melhores amigos, não puderam fazer absolutamente nada! Um tigre o atacou e deixou apenas suas calças como lembrança para a família. Arjun era um dos últimos defensores dos direitos das viúvas dos tigres daquela região. A ironia é gritante e, em casos como esse, a questão da esperança ganha o primeiro plano, evidenciando ainda mais o estado precário da região.

Um representante da organização climática 350.org disse que "Essa conferência climática é uma oportunidade para os líderes mundiais demonstrarem que eles entenderam as evidências irrefutáveis da ciência e que agora lançarão planos detalhados para reduzir urgentemente as emissões dos gases responsáveis pelo efeito estufa." A única coisa que você pode ouvir ecoar de uma Ilha em Desaparecimento e de seu povo é "será que eles realmente entenderam? O quão óbvios precisam ser os sinais da erosão e do consequente apagamento?"

Abhishek Basu

Às 21:15, nesse infeliz 20 de maio de 2020, enquanto o super ciclone Amphan já estava a duas horas passando de modo desenfreado pelas nossas janelas, a Ministra Chefe da Bengala Ocidental tweetou: "Estamos em um estado de desastre. Devastação total em 24 Parganas do Norte e do Sul. 500.000 evacuaram. Estamos chocados."  No dia seguinte, o Primeiro Ministro da Índia tweetou, "A nação está com Bengala." Enquanto o governo federal ainda deve 13.000 crores4Crore é uma unidade da numeração indiana igual a 10 000 000 (10 milhões). Ela é amplamente utilizada na Índia, Bangladesh, Nepal e Paquistão. As grandes quantidades de dinheiro na Índia são habitualmente escritas na forma de múltiplos de crore, como por exemplo "23 cr", o que seria 230 000 000 de rupias indianas. para os estados, o Primeiro Ministro faz pouco caso da dívida anunciando a liberação de 1000 crores referente a uma assistência provisória para a população de Bengala atingida pelo Amphan. Enquanto isso, o estado que já cambaleava por conta de  uma crise econômica resultante do fechamento de suas montanhas e litorais, e da consequente diminuição do turismo na região, agora perdeu sua receita proveniente da pesca, da produção de mel e, sobretudo, do rendimento agrícola dessas mesmas Ilhas em Desaparecimento. E isso ainda não serviu para declarar um Estado de Emergência nacional, muito menos internacional.

Tanto os números como as fotografias começam a fazer todo sentido agora. Não é preciso muito para ir de em desaparecimento para desaparecida. Apenas negligência.


 

Joyona Medhi | Índia |

Atualmente é editora na Provoke Papers,  publicação de fotografia documental trimestral financiada pelo Instituto Goethe como parte do programa Five Million Incidents. Com formação em sociologia da comunicação, ela está interessada em qualquer oportunidade para  aprofundar, especialmente, sua escrita, entrevistas e pesquisas. Conduziu entrevistas detalhadas na fronteira entre Índia e Bangladesh e atuou como assistente de direção em um documentário chamado The Borderlands, que será lançado em junho de 2020. Atualmente, ela está procurando financiamento para sua pesquisa de doutorado sobre os jornais de Assam - seu estado de origem. Seu trabalho já foi publicado em revistas como The Firstpost, Quint and Art e Deal Magazine.

joyonamedhi@gmail.com

@moi_joyona

Abhishek Basu | Índia |

Nascido em 1990 em Tatanagar, Jharkand, Abhishek é um fotógrafo documental freelancer, que trabalha para diversas editoras com técnicas experimentais de story telling, design de livros, curadoria e multimídia. Provoke Papers – um jornal trimestral, que tem como foco as migrações e as relações de trabalho – nasceu a partir de uma de suas séries intitulada “How green was my mountain” (Como era verde a minha montanha), onde Abhishek documentou por quatro anos as minas de carvão do distrito de Jharkhand em Jharia, 60 km da sua cidade natal. Seguindo o conselho de Abbas, "compre um par de sapatos e se apaixone por ele", as questões que atravessam seu trabalho abrangem a grande variedade de locais onde sua vida e compreensão o levaram. Se houvesse que existir uma linha/subtexto aplicável a todos seus trabalhos seria sua investigação da dureza da condição humana tentando fazer com que você a veja pelo que ela é. Seu trabalho já foi publicado em revistas como The Himal Southasian, The Wire, Burn Magazine, The Firstpost and Quint.

to.abhishekbasu@gmail.com

@pen_scratch_

Edições Anteriores

Assine nossa newsletter