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Um certo 36 de novembro

Merdi Mukore

| R.D Congo |

agosto de 2020

traduzido por Gabriela de Sousa Nunes

Certa vez, contava  meu pai, vivia um povo heterogêneo num território. Moravam em um imóvel sem o andar térreo, comparável ao nosso lote. Constituíram-se em uma Nação-Casa, da mesma forma que os ocupantes do nosso lote formam uma família. O chefe da nossa família ocupa uma cadeira e o chefe da Nação-Casa, uma poltrona. A diferença? O chefe da família é meu pai e o chefe da Nação-Casa, nós o chamamos ou o chamávamos de Bwana-Kitoko1NT: Alcunha dada ao rei Baudouin da Bélgica quando visitou em 1955 a República Democrático do Congo (RDC), à época chamada de Congo Belga. Significa “belo rapaz” em lingala, uma das línguas bantu faladas na RDC.. Na verdade, o seu nome varia de acordo com os humores, as épocas e os séculos. Em certa época, chamávamos-o de César para diferenciar do Czar, mesmo se os dois termos remetem ao rei, apesar de julgarem reinado arcaico; portanto, para torná-lo moderno, trocamos de reinado para república. Mandamos o Czar e o César pro lixo e, antes de mandar o Bwana-Kitoko se ferrar, colocamos nossos trajes de presidente.

Certa vez, contava  meu pai, e toda noite era assim, ele nos reunia todos para contar as histórias. Na verdade, ele nos conta uma única história, mudando-a cada vez. E faz isso tão bem que nos acostumamos a escutar as mesmas coisas sem nos cansarmos. Ele se senta na sua cadeira e nós, no chão. Pegando a sua garrafa de cerveja, que ele nos proibiu estritamente de beber, papai se lançava em um discurso infindável contando a mesma história, em uma nova versão. Ninguém podia sair antes do fim da história e a história só chegava ao fim quando  meu pai se levantava da sua cadeira e ia para o seu quarto. Eu tinha, portanto, a delicada tarefa de levar essa cadeira para o quarto do meu pai; só não sei porque eu não fiz isso.

E aconteceu que, ela desapareceu! A cadeira, a do meu pai, desapareceu. Estou morto. Morto e enterrado. Como pude deixar essa cadeira lá fora? Como pude ser tão negligente? A cadeira não pode desaparecer sozinha. Certamente foi roubada. Eu tenho que pegar esse ladrão antes que meu pai se livre de mim, tal como um ladrão vulgar, filho indigno, por  vingança pela sua cadeira.

Desgraça a minha! Desgraça aos meus filhos! Desgraça aos meus netos! Mesmo se eles ainda não nasceram, já são amaldiçoados. Eu não terei nem mesmo tempo de explicar ao meu pai, eu não terei nem a oportunidade de, sequer, dizer A, pois meu pai já terá esgotado todo o alfabeto. Desgraça! Eu não poderei nem mesmo fazer com que ele entenda que eu estava cansado, que tinha uma vontade louca de dormir, que minhas pernas mal suportavam o meu peso... Tudo que eu disser a ele não passará de pecado... pecado... pecado! 

Até meus irmãos ficarão bravos comigo. Essa noite, Papai não contará a sua história com várias versões, essa noite vou ser frito. O cúmulo é que eu não poderei mais ouvir o meu pai contar a história do Marechal. Ó meu Deus! Eu tenho que encontrar essa cadeira. Ainda ontem à noite, recurvado sobre nós, meu pai nos contava a fuga do Marechal na frente dos meninos, que mal sabiam manusear uma kalachnikov com o dobro do peso deles. Benditos meninos! Onde arranjaram essa coragem toda para dar um pontapé na bunda do mestre esclarecido?

O Homem-Estado, o Homem-Deus que planava nas nuvens. Sentado na sua cadeira, meu pai plana nas nuvens e faz isso desde que é meu pai, portanto, desde sempre e sempre sobre a mesma cadeira. Se eu não trouxer essa cadeira, ó meu Deus! Meu pai vai me matar. Ninguém pode imaginar meu pai se sentando em um outro lugar que não seja a sua cadeira, sua poltrona tão amada. Ninguém se imaginava sentando na poltrona do Marechal. Entre nós, é a cadeira do meu pai; a poltrona do Marechal. Ele parece tão confortável quando se senta nela, exatamente como se sente o Marechal na sua poltrona presidencial. Essa imagem da sua pose imperial sobre a sua cadeira ainda vive na minha mente. Impossível imaginar essa poltrona ocupada por outro que não o Marechal. Impossível que o meu pai se sente em outro lugar que não seja a sua cadeira.

Esse ladrão é um idiota ou, talvez, seja um ladrão amador. Entre todos os objetos encontrados ao seu alcance, ele pegou logo uma cadeira — a cadeira do meu pai! Felizmente para mim e, infelizmente para ele, ele está apenas a quatro lotes do nosso. Ele não corre tão rápido, pior: ele anda. Eu posso alcançá-lo. Eu vou alcançá-lo. Que tipo de ladrão corre sem pressa? Ele adorava não ter pressa, o Marechal. E, mais uma vez de acordo com o meu pai, depois de o Bwana-Kitoko partir, foi o abade-padre que ocupava a poltrona. Este último não a ocupava adequadamente e ficava o tempo todo preocupado com os seus primeiros-ministros. O primeiro-ministro é aquele tipo que gere a Nação-Casa enquanto o chefe está na poltrona. Parece que ele mesmo foi dispensado por Patrice, o primeiro da linhagem de todos os seus primeiros-ministros. Durante toda a disputa doméstica entre o padre e Patrice em torno da poltrona, o Marechal lá estava, sem pressa. Mas, em um certo 36 de novembro, o Marechal tomou as rédeas da situação, tirou o abade-padre da poltrona e garantiu o interino de Deus pai durante... trinta e dois séculos.

Inicialmente, deveria ficar por cinco anos. E, durante esses cinco anos, ele tinha o controle da terra, do ar, do fogo e da água. Ele controlava tudo, até mesmo o pensamento dos cidadãos. Evariste, o último dos primeiros-ministros do abade-padre, aquele mesmo que não teve tempo para saborear as delícias do poder, sabe das coisas. Um dia, com seus quatro companheiros, ele teve essa ideia horrível de pensar em substituir o Marechal. Nesse dia, o Marechal estava com humor ótimo. Mandou apenas que os enforcassem em praça pública, no dia de Pentecostes. Como ele estava com um humor muito bom, o Marechal quis baixar o Espírito Santo sobre eles. Assim, eles não pensarão mais em substituí-lo. Assim, eles não farão mais perguntas do tipo: quem vai se sentar na poltrona depois do Marechal? Acredito que o mesmo destino me será reservado caso eu não devolva essa cadeira para casa. A menos que meu pai esteja com excelente humor, como o Marechal que foi construir nessa praça pública, essa mesma praça onde o último dos primeiros-ministros e seus quatro companheiros rezaram a sua Ave Maria para receber o Espírito Santo, um estádio de futebol. Hoje, apenas os historiadores sabem que esse estádio repousa sobre um lugar onde foram enforcados aqueles que chamamos de mártires de Pentecostes; ainda de acordo com o meu pai. Que eu não seja o próximo, meu Deus! O Marechal era muito gentil, tão gentil que não esperou cinco anos para fazer entender a todos que adorava se sentar na poltrona e pretendia repousar sua bunda nela, ainda por algum tempo, tão somente. O meu pai também é gentil, ele proibiu formalmente que qualquer um se sentasse na sua cadeira.

Ó ladrão de baixa qualidade, que eu te alcance! Eu não vou gritar com ele para não alertar os vizinhos. Hoje em dia, nós só podemos contar com nós mesmos. O Marechal entendeu isso à sua própria custa. Um dia, o Marechal ficou doente. Um dia, o Marechal teve problemas com um de seus fiéis tenentes — aquele que cobiçava a poltrona — e, um dia, o Marechal precisou de uma ajuda. E o apoio que recebeu dos seus vizinhos, vindos supostamente para ajudá-lo, veio como um bando de meninos que brincavam de polícia e ladrão à maneira dos adultos. Resultado: o Marechal acabou fugindo. Eu vou pegá-lo sozinho. Eu não preciso dos vizinhos. Eu não preciso da polícia, nem da infantaria, nem do povo. Esse grande povo, unido como nunca, cantando o djalelo2 NT: Canção entoada à glória de Mobutu Sese Seko, líder ditatorial da RDC de 1965 a 1997. em homenagem ao mulopwe3NT: Título de “rei divino/imperador” do Império Luba (1585-1889), localizado na região onde encontra-se hoje a RDC., suando com o ndombolo4NT: Dança e estilo musical originários da RDC. como guerreiros tradicionais. Esse mesmo povo que rapidamente virou as costas para o Marechal para aplaudir o chefe do bando de meninos que usavam botas grandes demais para seus pés. O Libertador é o seu nome... Meu pai o chama de o Libertador. A poltrona, sem o Marechal, agora é a poltrona do Libertador, ele a legará como herança a seu Filho. Mas eu, eu arrisco perder a minha herança se não alcançar esse ladrão de cadeira.

Eu arrisco coisa pior: ser despejado do teto familiar justo por uma cadeira. Sim! Justo por uma cadeira. O Libertador ganhou uma bala mal-educada em pleno coração justo por uma poltrona. Talvez tenha sido bem feito para ele. Talvez não. Pouco importa, com o Libertador nós não sabíamos quem faz o que, como e por quê. Era um disparate. Só que dessa vez o disparate foi meu. Eu tinha o dever de cuidar dessa cadeira. O meu pai confiou em mim, ele me confiou a guarda do símbolo de sua autoridade. Que desperdício!

Ladrão de galinha, eu te pego! Como um tipo tão corpulento como você pode se rebaixar a roubar apenas uma cadeira, uma simples cadeira? Você não tem vergonha? Me dê essa cadeira. Você acha que o seu tamanho me dá medo? Não. Waya5 NT: “De forma alguma” em lingala.! Eu preferiria mudar minha cara do que perder a confiança do meu pai. Eu prefiro que você me enterre imediatamente a voltar vivo para a casa do meu pai sem a sua cadeira. Você quer saber quem eu sou? Eu sou o filho do meu pai. A cadeira que você carrega é a cadeira do meu pai. Não, eu não sou o Filho do Libertador. O Filho do Libertador tenta esculpir a poltrona para o seu tamanho. Eu, eu sou filho do meu pai. Você não deve se fazer perguntas do tipo, qual é a minha tribo? Por que eles não me conhecem? Quem é a minha mãe? Quem é o meu verdadeiro pai? Qual é o meu bando? Perguntas com respostas rocambolescas, tanto umas como as outras. Niet!6 NT: “Não” em holandês, uma das línguas oficiais da Bélgica. O território onde hoje se localiza a RDC foi concedido como possessão pessoal ao rei Leopoldo II da Bélgica em 1885 com o nome de Estado Livre do Congo. Mais tarde, em 1908, a possessão real tornou-se colônia da Bélgica com o nome de Congo Belga. A colonização belga é considerada uma das mais violentas da história africana. Eu não sou o Filho do Libertador. Eu sou o filho do meu pai. O Libertador não durou sobre a poltrona e não estou nem aí que ele não tenha tido tempo de fazer as apresentações. Eu me apresento, eu sou Issa, filho do meu pai, o proprietário incontestavelmente incontestado da cadeira que você carrega.

Não, eu não estou te ameaçando. Eu só quero recuperar a cadeira do meu pai. Eu não vou gritar com o ladrão como todas essas vítimas de guerra gritam com o violador. Aqueles que ameaçam o Filho de roubar-lhe a poltrona têm só que esperar as eleições. Desnecessário uma votação para recuperar a cadeira do meu pai. Não se pode confundir a cadeira do meu pai com a poltrona do Marechal. É a cadeira do meu pai, ela pertence a ele duplamente por direito. Em primeiro lugar, é o meu pai e, em segundo, é a sua cadeira. Você pode dizer que é tua. Mas nós dois sabemos que isso é mentira. Essa cadeira, essa poltrona, muitos podem reivindicá-la, mas somente o meu pai e o Filho do Libertador podem possuí-la. Por quê? Mas é simples, Senhor ladrão. As regras do jogo são claras. A cadeira pertence ao meu pai e quanto à poltrona, para tê-la, é necessário esperar a próxima disputa democrática por pênaltis. Aquele que marca na primeira tentativa tem a possibilidade de cobrar um outro pênalti, só um, não mais. O Filho já cobrou os seus dois pênaltis. Parece que ele subornou o árbitro para ter um terceiro pênalti. Opa, eu não estou subornando o senhor. Eu disse que parece. Parece... Tem que se verificar. Que haja mais um pênalti, eu não tô nem aí, eu só quero recuperar a cadeira do meu pai...

Não, eu não quero brigar com o senhor. Não se briga por uma cadeira, Senhor ladrão. O povo desceu à rua para protestar contra esse rapaz que quer se agarrar à poltrona, eu desço nessa rua sombria para recuperar a cadeira do meu pai que o senhor... que o senhor confundiu por engano com a poltrona do Marechal. Eu não digo que o senhor a roubou. Quando o povo foi às ruas, uns disseram que foi para protestar, protestar contra o Filho, o pai, o avô e é protestando que os jovens ergueram barricadas para barrar a estrada aos grandes Mopao7 NT: “chefe” em lingala., que rodam nessas caixas enormes onde faz mais frio que no Polo Norte. Para outros, os jovens saíram para saquear as lojas, as casas, os clubes noturnos, as escolas, o gabinete do primeiro-ministro, as igrejas, as mesquitas, enfim, tudo que podia ser saqueado. Com o senhor eu não protesto, pois o senhor não saqueou nada, mas roubou... não... O senhor pegou a cadeira do meu pai. 

O quê? Brigar com o senhor? Nunca, em toda a minha vida. Entre pessoas civilizadas resolvem-se os desacordos de forma pacífica, diplomática. A época de socos e murros está no passado, Senhor ladrão, sejamos civilizados. O quê? O Senhor ainda quer brigar? Vá brigar por causa da poltrona do Marechal e deixe a cadeira do meu pai tranquila, é melhor para o senhor. Com a poltrona, as pessoas lhe respeitam, elas chamam o senhor de Excelência. Em todos os lugares onde o senhor for, vão lhe estender o tapete vermelho. Haverá uma multidão alvoroçada, pessoas que vivem apenas para entoar o seu nome, cantar os seus louvores e dançar a sua glória. Pense na glória que o senhor terá com a poltrona do Marechal. Pense no sucesso, sobretudo junto às mulheres. O senhor ama as mulheres? As mulheres virão se entregar a seu bel-prazer à vossa boa vontade. E haverá mulheres de todas as cores, todas as raças, todas as formas. Pense nisso, Senhor ladrão. O senhor não terá absolutamente nada disso com a cadeira do meu pai. O senhor quer uma cadeira? Vá se sentar na poltrona. O senhor quer sucesso? Vá se sentar na poltrona. O senhor quer dinheiro? Vá se sentar na poltrona. Vá roubar a poltrona, o senhor ganhará muito, Senhor ladrão. Isso, de acordo com o meu pai. Não, eu não debocho do senhor. Não, eu não quero brigar com o senhor. O senhor é muito forte para mim. Economize seus socos…


 

Issa, acorde. É a voz da minha irmã.

Meu Deus! Estou todo suado, sem nenhum arranhão, no meu quarto. Não estou acreditando, eu recuperei a cadeira do meu pai. Um direto foi o suficiente para neutralizar o ladrão. Meu pai poderá nos contar a sequência da história do Marechal e da sua poltrona. Eu gostaria muito de saber o resto.

— Você está aí dormindo enquanto nós estamos todos lá fora, me diz a minha irmã.

— O que está acontecendo lá fora?

— Pegaram um ladrão!


original publicado em Chronique des Grands Lacs

Merdi Mukore | R.D Congo |

É um jovem escritor congolês. Escreve textos de teatro, contos e prepara o seu primeiro romance. Seus textos são traduzidos para o inglês, suaíli e português. Ele participa de vários ateliês e residências de escrita organizados pelo Tarmac des Auteurs, ateliês sobre contos da Writivism e da Afro Young Adult. Seus textos de teatro foram levados ao palco de diferentes eventos culturais tais como o Festival Ça se passe à Kin (Isso acontece em Kin). Seus contos foram publicados em antologias, especialmente Chronique des Grands Lacs, Les oiseaux d’eau sur la rive du lac : une anthologie de jeunes adultes africains (Crônica dos Grandes Lagos, Os pássaros da água na margem do lago: uma antologia de jovens adultos africanos) e em revistas literárias (Lelo magazine, WIP Littérature sans filtre, Periferias).
Membro ativo de várias associações culturais, especialmente o Tarmac des Auteurs. Membro do Conselho Administrativo dos Escritores do Congo ASBL e do Comitê editorial das Edições Miezi. Secretário-geral (2019-2020) da Associação dos Jovens Escritores do Congo.

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