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ilustração: Juliana Barbosa

Narrativas anticoloniais das Áfricas

IPAD entrevista Vensam Iala, do coletivo Visto África

por Cleber Ribeiro e Daniel Martins de Araújo

| Brasil | Guiné-Bissau |

Cleber Ribeiro: o que é o Visto África? Como surgiu e qual o objetivo?

Vensam Iala: Visto África é um projeto que começou em 2012 em virtude da minha vinda ao Brasil. Eu cheguei no Brasil em 2010 e fui direto para a faculdade Unesp, em Assis, onde me formei em Letras. Durante a minha graduação, percebia a ausência muito significativa das Áfricas. E as abordagens que se tinha sobre a África forçavam um estereótipo que não era a África que eu vivo, vivi, por exemplo, que eu conheço. São várias Áfricas estereotipadas em uma só, não é? Aquela imagem que vê uma África singular. África como país. Isso começou a me incomodar muito.

A grade curricular também não tinha elementos que fornecessem possibilidade de conhecer as literaturas ou as filosofias das Áfricas. Fica evidente que, dentro da faculdade, construiu-se um imaginário de uma África singular, totalmente estereotipada. Estamos falando da necessidade das pessoas terem acesso às informações. As pessoas estão ali para construírem um conhecimento e esse conhecimento não é possibilitado através daquilo que vem das Áfricas. Isso me incomodou muito.

Aí eu comecei a falar sobre trazer uma narrativa onde apareça o protagonismo africano, em que a gente pode contar a nossa história através das nossas vivências. Aí lancei a campanha do Visto África. Uma campanha cívica, de conscientização pública, que visa mostrar o outro lado das Áfricas para desconstruir essas representações que não só a sociedade reproduz, mas, também, a academia. E o Visto África visa combater essas visões reducionistas do continente e do povo das Áfricas. E do povo negro de uma maneira geral. Então o Visto África surgiu assim e tem o objetivo de desconstruir narrativas ocidentais sobre o continente Africano. Não só desconstruir, mas trazer uma narrativa outra, não uma narrativa nova, mas a narrativa que foi negligenciada. Mostrar o outro lado dessas Áfricas, de maneira a sensibilizar e educar as pessoas.

"Lancei a campanha do Visto África, uma campanha cívica, de conscientização pública, que visa mostrar o outro lado das Áfricas para desconstruir essas representações que não só a sociedade reproduz, mas, também, a academia. E o Visto África visa combater essas visões reducionistas do continente e do povo das Áfricas. E do povo negro de uma maneira geral"

Daniel Martins: Pode falar um pouco mais da composição do Visto África? Quem são as pessoas que o formam, e de quais países?

Vensam Iala: A ideia surgiu comigo em 2012, mas não conseguia elementos suficientes para fazer engrenar. Depois que me mudei pra São Paulo, há dois anos atrás, comecei a trabalhar nele. Como sou presidente da Associação da Comunidade da Guiné Bissau, aqui em São Paulo, tenho bastante contato com o pessoal da minha comunidade. Então o projeto é constituído majoritariamente pelo pessoal da minha comunidade, que são da Guiné Bissau. Tem dois do Benin, que são meus amigos, que ajudam a trazer conteúdos. Como é um espaço que está em construção, e que busca diferentes povos das Áfricas, tem moçambicanos no projeto, tem uma menina da Costa do Marfim. Junta-se ao engajamento, construindo junto. A ideia é que tenham essas várias Áfricas dentro do mesmo projeto. Desenvolvemos vários projetos de capacitação. De conversação, de motivação às crianças. Por que temos crianças, filhos dos imigrantes africanos que sonham. Brasileiros, na verdade. Têm nacionalidade brasileira, mas têm pais de alguns países africanos. No caso concreto da Guiné Bissau, desenvolvemos projetos de motivação, principalmente nas áreas artísticas. Muitos que querem ser artistas, modelos, atores.

E, quando falo dessa questão educacional que a gente tem especificamente, esse cunho pedagógico que a gente também traz, é porque acreditamos que uma abordagem que realmente traga resultados positivos tem que ser educacional e, principalmente, voltada ao público infantil. Nós temos muitas abordagens, também modos de convencer o nosso público. Nós temos  um quadrinho com narrativas lúdica de imigrantes africanos no Brasil, uma forma que interessa às crianças. Por que entendemos que construindo o imaginário dessa criança, criando essa empatia, mostrando para as crianças que há diversidade, que nós somos plurais, diversos e diferentes, mas que  nossas diferenças têm que nos completar e não nos separar, assim conseguiremos um resultado muito mais efetivo a longo prazo do que se realmente focássemos só nos adultos.

"A ideia é que tenham essas várias Áfricas dentro do mesmo projeto. Desenvolvemos vários projetos de capacitação. De conversação, de motivação às crianças. Por que temos crianças, filhos dos imigrantes africanos que sonham. Brasileiros, na verdade"

Cleber Ribeiro: Quais são os cuidados importantes para se entender África enquanto um continente?

Vensam Iala: É importante compreender a África enquanto continente a partir das histórias das várias Áfricas. Contar a África não da forma como é contada aqui no Brasil, por exemplo, parece que a história africana começa a partir do navio negreiro. É preciso parar com essa história. É preciso realmente contar a história da África dos grandes reinos, dos impérios que, antes de invasão europeia, já tinha uma sociedade estruturada. Queremos que se conte essa história  porque é importante no ponto de vista histórico e do ponto de vista da construção do imaginário ontológico de todos os sujeitos pretos. Por que a partir do momento que a pessoa conhece a sua história, sabe as suas raízes e como se posicionar no hoje. Sabe como se andar para o amanhã. E se nega no Brasil, aos pretos daqui, esse recentramento daquilo que é o continente africano desde o início, antes da chegada dos europeus. Falar dessa África pré-colonial já que a história que se conta é só colonial, que vai reforçar o estereótipo reducionista do continente africano, como se fosse uma coisa só. Como se fosse criando aquelas imagens da miséria, da pobreza, da fome, enfim. Todas as imagens que buscam realmente envergonhar não só os povos das Áfricas, mas os pretos que tem essa descendência a ponto de negarem esse lugar.  É importante mostrar a história real do nosso povo porque é uma história de orgulho. Então nós acreditamos que fazer esse resgate, contar essa história dessas Áfricas pré-colonial vai reconfigura a narrativa do continente. 

Isso é fundamental para nós, povo das Áfricas. Quando eu falo povo das Áfricas, falo não só os africanos que nasceram no continente, mas os africanos, os pretos que nasceram nas diásporas. No Brasil, nos Estados Unidos, na Jamaica, e por aí vai.

"Todas as imagens que buscam realmente envergonhar não só os povos das Áfricas, mas os pretos que tem essa descendência a ponto de negarem esse lugar.  É importante mostrar a história real do nosso povo porque é uma história de orgulho"

Cleber Ribeiro: Acho que essa sua fala faz uma ancoragem para te perguntar  sobre os principais desafios que os imigrantes dos países do continente africano, das Áfricas, vivenciam no Brasil.

Vensam Iala: São inúmeros, né. 

Eu gostaria aqui de falar um pouco do estatuto do estrangeiro. O estatuto do estrangeiro aqui no Brasil  vê o imigrante como uma pessoa perigosa. Mas, que imigrante é esse? Nós sabemos também, isso é fato que, historicamente, teve uma política de higienização aqui no Brasil que possibilitou a entrada dos europeus pra cá para embranquecer a sociedade brasileira. E negou-se a vinda dos povos vindos das Áfricas. Então tentou-se embranquecer essa sociedade. O que vai dizer que o estatuto da imigração? Que imigrantes são perigosos, mas não todos. Seriam os imigrantes africanos que vêm desses países. Os imigrantes pretos, que pagam muito por isso. 

Então você chega aqui, enquanto imigrante de um país africano, você começa a ter uma dificuldade tremenda como a questão da documentação. 

Acho que foi no ano passado, 2019 o estatuto da nova lei da imigração, Lei nº 13.445/2017.  Essa nova lei da imigração tentou ser um pouco maleável, mesmo assim ainda não tirou os imigrantes daquele lugar de periculosidade. E, esse lugar se manifesta sempre para os imigrantes africanos, porque aí vai linkando com a questão da história da escravidão, em que se os próprios pretos que nasceram aqui não tiveram esse lugar de respeito, de consideração, e são vistos também como pessoas perigosas nessa sociedade. 

"O que vai dizer que o estatuto da imigração? Que imigrantes são perigosos, mas não todos. Seriam os imigrantes africanos que vêm desses países. Os imigrantes pretos, que pagam muito por isso"

Imagina o preto que não carrega apenas a carga de ser preto africano, carrega a carga de ser o outro, o estrangeiro, o forasteiro, entende? É do tipo, nós chegamos aqui enquanto imigrantes africanos, abraçamos as causas das lutas dos nossos irmãos pretos que nasceram aqui e nós temos uma outra luta ainda que é o fato de que não somos desta terra. 

Nós estamos toda hora sendo apontados como o outro, que é para o nosso país que temos que voltar, que não somos daqui. Isso nos olhares, isso nas conversas, nas mais diversas formas na sociedade. Então é um desafio tremendo pra gente ocupar esse espaço, mas nós queremos estar nesse espaço de dignidade humana que nem os próprios pretos que nasceram aqui estão. Então o trabalho é em dobro. Eu acho que nós enquanto povos africanos, os pretos que nasceram nas diásporas, como os que nasceram no continente, nosso desafio é unir nossas pautas de luta.

Sabemos que, segundo dado do IBGE, 70% dos municípios brasileiros tem a presença significativa dos imigrantes. Mas, só 5% desses municípios tem uma política de acolhimento, de atendimento aos imigrantes. Mas tem organizações, tem sempre iniciativas surgindo dos próprios imigrantes para tentar sanar essa situação. Tem imigrantes criando empresas, dando emprego não só para os imigrantes, mas também para os brasileiros, ou seja, estão ali movimentando a economia do país. 

"Sabemos que, segundo dado do IBGE, 70% dos municípios brasileiros tem a presença significativa dos imigrantes. Mas, só 5% desses municípios tem uma política de acolhimento, de atendimento aos imigrantes. Mas tem organizações, tem sempre iniciativas surgindo dos próprios imigrantes para tentar sanar essa situação. Tem imigrantes criando empresas, dando emprego não só para os imigrantes, mas também para os brasileiros, ou seja, estão ali movimentando a economia do país" 

 

Cleber Ribeiro: Como é tornar-se negro no Brasil para você? Como você vê esse processo?

Vensam Iala: Gosto muito do termo que você usou, de tornar-se negro. Isso é muito importante dizer porque eu enquanto sujeito guineense, enquanto sujeito Balanta que é a minha linhagem enquanto sujeito de clã Kuntóe / Nhakra que são as qualidades que me representam enquanto sujeito. Inclusive isso é muito importante dizer, por que eu não me apresento como Vensam da Guiné Bissau, eu me apresento pelo meu sobrenome, que é o sobrenome da minha linhagem, e isso já diz muito sobre quem eu sou. Quando eu vim, eu sou formado nesse meio social, nessa forma de relação interpessoal com as pessoas. Quando chego ao Brasil, tenho que chegar de outra forma. 

Fiquei um pouco numa crise de identidade porque eu me reconheci negro aqui no Brasil e, como se não bastasse, reconheci que isso é um problema. Por que no meu país nunca nós paramos para pensar sobre isso. Tem o fato de que o país é constituído por pessoas pretas, esmagadoramente pretas, então, depois da independência do país, todas as instituições são ocupadas por pessoas pretas. Com isso, também as decisões de poder do país sobre pessoas pretas são tomadas por pessoas pretas. Minhas referências são pessoas pretas, diferentemente do processo que se dá aqui no Brasil. É que eu chego num país em que eu passo a me reconhecer enquanto porque os olhares das pessoas me dizem que aquele lugar que eu estou talvez não seja meu. 

Eu venho de um lugar em que a minha autoestima, eu digo no sentido geral assim, ela é muito alta, é muito para frente. Eu sou uma pessoa que olha pra frente e que vai, eu fui educado nessa lógica de buscar o que eu quero. Mas é que a sociedade brasileira, na minha experiência, não permite aos meus semelhantes: o direito de ser apenas uma pessoa ou um rapaz, porque toda hora acrescentam que você é uma pessoa e um rapaz, mas preto. Isso, obviamente, nos leva a um outro lugar.

"Eu venho de um lugar em que a minha autoestima, eu digo no sentido geral assim, ela é muito alta, é muito para frente. Eu sou uma pessoa que olha pra frente e que vai, eu fui educado nessa lógica de buscar o que eu quero. Mas é que a sociedade brasileira, na minha experiência, não permite aos meus semelhantes: o direito de ser apenas uma pessoa ou um rapaz, porque toda hora acrescentam que você é uma pessoa e um rapaz, mas preto. Isso, obviamente, nos leva a um outro lugar"

 

Cleber Ribeiro: Qual é a centralidade do direito à moradia para os imigrantes dos países africanos?

Vensam Iala: Essa questão da moradia é muito importante por que é um dos pontos centrais que acomete os imigrantes daqui, junto com a questão da documentação e do trabalho. A maioria dos imigrantes parece que vivemos à margem da sociedade. À margem da sociedade, por que se você não tem trabalho, você não tem documentação e dificilmente vai trabalhar. Nem preciso dizer que sem trabalho você acaba morando em situações de vulnerabilidade. 

A nossa comunidade inclusive, da Guiné Bissau, a maioria vive em zonas periféricas, bem distantes do centro. Porque é a condição que muitos encontram. Já passei por situações de ligar para o proprietário  pra tentar alugar casa, no centro, num lugar bem central e ouvi um  "não", pois não queria ter imigrante africano. Construiu-se um imaginário que criou esse sujeito imigrante, africano, nesse lugar de perigo, do medo. As pessoas têm um medo duplo do cara que é preto e, que é africano. 

Tem muitas manifestações de políticas de movimentação das comunidades dos imigrantes, que  busca conceder documentação aos imigrantes que são ditos ilegais. Para que eles possam não só conseguir trabalho, mas que possam também conseguir moradias. Muitos imigrantes africanos e bolivianos, inclusive acho que bolivianos são a maior comunidade de imigrantes aqui no Brasil, estão em movimentos de ocupações. Parece que esse lugar é o que sobra.

Tem o movimento de grupos de imigrantes de alguns estudantes da USP, que se chama Fronteiras Cruzada. Tem o ProMigra, Projeto de Promoção de Direito de Migrantes, Extensão da Faculdade de Direito da USP, que é um projeto de extensão do curso de Direito da USP. 

"Tem muitas manifestações de políticas de movimentação das comunidades dos imigrantes, que  busca conceder documentação aos imigrantes que são ditos ilegais. Para que eles possam não só conseguir trabalho, mas que possam também conseguir moradias"

Semana retrasada [15 de julho de 2020] estivemos numa ocupação na COHAB de Carapicuíba a levar umas cestas básicas, que vieram de uma movimentação do MST. Nessa comunidade tinha boliviano, tinha guineenses, angolanos, haitianos. Tem sim uma rede que se movimenta, mas essas redes precisam ser fortalecidas.  E, combinamos cá entre nós, que esse governo não é um governo para termos esperança de que isso vá acontecer. 

Também a Cáritas aqui em São Paulo desenvolve um trabalho muito importante de acolhimento ao imigrante. Só a cidade de São Paulo concentra 50% da população imigrante no Brasil. 

Cleber Ribeiro: Como você vê o direito à saúde do imigrante das Áfricas no contexto da Pandemia? 

Vensam Iala: Acho que tudo só se agrava no contexto da pandemia. Tem um caso muito, muito simbólico de um imigrante do Haiti, de uma imigrante, que estava grávida e foi para o hospital e ela não foi atendida. Simplesmente não foi, apesar de estar com a documentação e tudo. O esposo até fez uma gravação denunciando o caso, mas a pessoa, a enfermeira simplesmente não quis atendê-la porque tinha pessoas brasileiras que pra atender. O SUS é o sistema  que todos os imigrantes praticamente usam aqui. E é o sistema de saúde que é preciso que houvesse uma política pública de fortalecimento, porque SUS tem salvado vidas de muita gente. 

Se eu já não tenho direito a vir aqui, a ter um documento daqui, eu não tenho direito a morar aqui, eu não tenho direito a trabalhar aqui, imagina ter direito à saúde. Saúde, moradia e acesso a trabalho, são direitos básicos. E é isso que o sistema nos nega. Porque são pessoas brancas que estão ocupando esse lugar, aí não aceitam prover atendimento às pessoas pretas, as pessoas imigrantes vindas das Áfricas. Nessa pandemia tem ocorrido muita negligência médica. 

Nós passamos por um caso de uma menina que teve uma negligência obstétrica, e isso nós podemos fazer um outro recorte trazendo o fato de que isso historicamente já acontece aqui no Brasil. Negligência obstétrica às mulheres pretas no país. Aconteceu com uma imigrante que estava no momento do parto, e não foi dado a anestesia que acabou complicando e hoje ela não está conseguindo nem andar. E é um caso muito, muito complicado e não tem documentação porque poderia ter recorrido à justiça mas precisa de documento para fazer qualquer tipo de Boletim de Ocorrência. 

Acho importante falar nesse contexto de pandemia, que "África não é um laboratório de teste". Historicamente, o continente africano, os povos das Áfricas foram usados literalmente para testes, temos relatos de histórias de muitos outros vírus que foram criados nos laboratórios europeus, e que foram levados para o continente africano. Então, não é à toa que um médico francês sugere um teste nos africanos, para a descoberta da vacina da Covid-19. Isso sempre aconteceu historicamente, desde a virada do século 20.

Isso tem que se falar, por que essa questão da pandemia, isso que está acontecendo agora nesse momento, estão usando os povos das Áfricas para testar suas vacinas. Isso está acontecendo propriamente na Guiné-Bissau. Miguel de Barros comprou essa briga, recentemente com o governo guineense, que permitiu uma pesquisa sobre a vacina da poliomielite. Então é importante que a gente fale sobre isso realmente, por que o ocidente vê o continente africano, vê os pretos como sujeitos animais. Animais que só servem para as suas pesquisas. Agora é importante que nós, enquanto africanos comecemos a pensar a nossa agenda. Como a gente enfrenta isso? 

Temos que começar a valorizar o que nós produzimos. Pensar a nossa saúde através das formas milenares que nós esquecemos. Abominavam, disseram que nossas formas milenares de nos tratar eram defasadas. Acredito piamente que todas as doenças nós tratamos com medicamentos naturais. Isso era uma forma de viver dos povos das Áfricas.

Daniel Martins: Zukiswa Wanner, fundadora do festival Afrolit Sans Frontieres diz muito sobre o como a África é lida no mundo todo e, que  está escrevendo. Existe uma universalidade na escrita das Áfricas, que é enorme. Ben Okri diz “a África está escrevendo e a África está prosperando’. Então, qual é essa mensagem que você transmite tanto para a comunidade de imigrante das Áfricas como para a própria sociedade brasileira para que revejam o olhar sobre o que não conhecem ou ignoram?

Vensam Iala: Eu queria lembrar de alguns pensadores que antes de mim fizeram todo um percurso para que eu pudesse estar aqui hoje. Queria lembrar o pensamento de Nah Dove, queria lembrar também do Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Julius Kambarage Nyerere, da Tanzânia, Samora Moisés Machel, de Moçambique e Abdias do Nascimento, Dandara e tantos outros e outras né. Muitos outros que permitiram que eu estivesse hoje aqui nessa conversa. E dizer que, essas pessoas não estão aqui nesse campo físico com a gente, mas espiritualmente estão, suas ideias estão aqui com a gente. O que estamos fazendo não tem nada de novo, nós estamos só reforçando, resistindo com essas ideias que eles implantaram, trazido de seus ancestrais, seus passados que agora nós é que estamos continuando. Para dizer que essas Áfricas existem em nós, todos nós. 

"Queria lembrar o pensamento de Nah Dove, queria lembrar também do Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Julius Kambarage Nyerere, da Tanzânia, Samora Moisés Machel, de Moçambique e Abdias do Nascimento, Dandara e tantos outros e outras"

E que essa África não morreu, essa África vive e produz. Como você disse, e muito bem, nós precisamos mostrar, expor, permitir que essas Áfricas floresçam. Então, uma mensagem do Padre Antônio Vieira no contexto do Brasil, que ele fala que "o brasil tem sua alma na África e o seu corpo nas Américas, enquanto não permite que sua alma realmente floresça viva, não vai ser um Brasil que se quer ser". Eu acho isso muito importante, então, no contexto do Brasil é preciso realmente pensar esse conceito da universalidade que temos. Esse conceito universal que a África tem o seu lugar. 

Nesse contexto de pandemia todo mundo tem que estar em casa, todo mundo tem que ter muito cuidado. Tem que pensar no outro, no próximo. E isso para a gente não tem nada de novo, isso é o modo de viver africano. Isso é o modo de viver nas Áfricas, isso é Ubuntu. E o Ubuntu não é só eu sou porque nós somos, aí essa filosofia acaba sendo muito reduzida a essa frase. Ubuntu é uma das filosofias africanas que mais se conheceu no Brasil e no mundo a fora, mas que precisa ser explorado de fato, além do conceito, na prática.

O meu autocuidado, a forma como eu me enxergo, eu só vou me enxergar partir do momento que eu consigo ver, ir além e enxergar o outro, isso é na prática. Um bem-estar, um autocuidado que preza pelo bem-estar coletivo. Então, eu não faço mais por mim, eu faço porque além de mim tem muitos outros, que eu só vou fazer, a minha parte só vai ser efetiva a partir do momento em que eu penso nos outros, do contrário não. É isso que a pandemia está nos ensinando, olhar para o outro.


transcrição
Cynthia Rachel Pereira Lima

Vensam Iala | Guiné-Bissau |

Ativista, ator, modelo e formado em Letras na Unesp. É idealizador e fundador do coletivo Visto África.

@vistoafrica @vistoafrica

Cleber Ribeiro | Brasil |

É coordenador executivo do IPAD Instituto de Pensamentos e Ações para Defesa da Democracia.

Daniel Martins de Araújo | Brasil |

Editor executivo e tradutor na Revista Periferias.

daniel@imja.org.br

@danmstefani

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