CIMI Conselho Indigenista Missionário
Resistência indígena em meio a reconfigurações políticas, discursos, demandas e ataques ultraconservadores
por Roberto Antonio Liebgott
| Brasil |
agosto de 2020
Resumo
Com base em pronunciamentos e medidas realizadas por integrantes do governo federal brasileiro, cujo mandato iniciou em janeiro de 2019, e em posicionamentos de movimentos indígenas, o presente artigo analisa alguns debates que se estabelecem no âmbito da política pública. Argumenta-se que discursos anti-indígenas proferidos por governantes no Brasil contemporâneo são mobilizados, de maneira especial, por disputas em torno de recursos ambientais, minerais e territoriais, resguardados aos povos indígenas por meio de um dispositivo constitucional. A análise mostra que estão em disputa os sentidos da terra, vista, por um lado, como recurso de vida, destinada à posse indígena e sob proteção da União, e por outro, como recurso para exploração e expansão do agronegócio, sob a forma da propriedade privada. Demonstra, ainda, o ressurgimento de discursos governamentais integracionistas, comuns no período ditatorial brasileiro, por meio dos quais se vislumbra a dissolução das diferenças e a inserção indígena na lógica de vida colonial, moderna e ocidental. Os povos indígenas resistem às ofensivas históricas defendendo o respeito aos seus modos ancestrais de pensar e de viver.
No Brasil, desde o início do governo de Jair Bolsonaro, foram intensos os debates na sociedade, uma vez que se instituía no âmbito da administração pública uma visão extremista e centrada na perspectiva de desqualificação das políticas e dos políticos, tratando a todos como corruptos, esquerdistas, vermelhos e comunistas. Essa retórica pobre e circular — sempre com os mesmos argumentos, apresentados como verdades absolutas — se refletiu no ferrenho combate às instituições e políticas públicas que promoviam os direitos dos povos indígenas, dos quilombolas, do povo negro, dos coletivos feministas, dos movimentos LGBTQI.
A perspectiva cidadã, que se nutriu fortemente no Brasil desde o fim da ditadura militar e que marcou, inclusive, a Constituição de 1988, ela própria adjetivada como cidadã, acabou enfraquecida. Em seu lugar está se elevando o fundamentalismo, especialmente religioso, porque este, em geral, se estruturou e permanece latente em quase todas as denominações religiosas e nas concepções de sociedade e de Estado. Tais concepções combinam com a perspectiva de uma gestão pública sucateada, sem pudor, sem compromisso ético. Bolsonaro, um político do “baixo clero” do sistema partidário brasileiro, demonstrou ter as condições de exercer o papel de propagador do ódio, da violência, da política sem ética. Este sujeito compôs um governo para legitimar reformas antipopulares como a previdenciária, tributária e as demais ainda a serem impostas. Ele e seus escolhidos defendem abertamente o armamento de pessoas — e aqui não se trata de ação de autodefesa, e sim de cultivo de um sentimento bélico contra o outro: o que não se enquadra num modelo imposto, o morador de rua, o desempregado, o sem-terra e sem teto, o indígena. Bolsonaro estruturou um governo que vem gradativamente dilacerando a educação pública universitária e as pesquisas acadêmicas e científicas, e que combate políticas e ações afirmativas, apregoando a meritocracia e a concorrência como valores indiscutíveis. Este governo opera ainda a desregulamentação dos direitos ambientais e, por distintos meios, estimula a invasão de terras indígenas, de áreas ambientais e reservas florestais.
Sobre o traçado deste governo, Cioccari e Persichetti (2018) afirmam:
Jair Bolsonaro é membro ativo e uma das principais vozes dessa parcela da população que defende a redução da maioridade penal e faz apologia explícita às armas. Some-se a isso o fato de ter se envolvido em casos de racismo e misoginia amplamente divulgados pela imprensa. Bolsonaro corrobora a exacerbação de discursos negativos tão presentes na sociedade contemporânea.
As autoras também destacam que, ao longo da campanha eleitoral, construiu-se, por um lado, a imagem de Bolsonaro como parlamentar atento a princípios conservadores e defensor dos chamados valores da família, capaz de promover uma moralização na política e, por outro lado, a imagem de alguém que dá voz aos discursos de ódio, ao machismo, à homofobia, ao racismo, ao preconceito que se constitui nos subterrâneos do social e que, por longo tempo, foi velado e coibido.
Um governo hostil para com a maioria dos governados
Jair Bolsonaro, nos primeiros dias de seu governo, confirmou sua postura autoritária, seu viés conservador e as pautas morais assumidas com grupos de eleitores mais convictos. Contudo, a ascensão de uma onda conservadora no Brasil não inicia neste pleito eleitoral. Um traço visível do conservadorismo preponderante no pensamento social (e político) pode ser visto na eleição de deputados e senadores, que, desde 2014, expande o número de parlamentares vinculados à Bancada BBB, termo usado para fazer referência aos vínculos entre a bancada armamentista (“da bala”), bancada ruralista (“do boi”) e bancada evangélica (“da bíblia”) no Congresso Nacional do Brasil.
Uma das primeiras ações do presidente foi a edição da Medida Provisória (MP) n. 870, de 1º de janeiro de 2019, transferindo responsabilidades relativas aos procedimentos de demarcação de terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Até então, a atribuição de demarcar terras indígenas estava (e voltou a estar, posteriormente) sob a responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), vinculada ao Ministério da Justiça; já as terras de quilombolas são atribuição do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), vinculado à Casa Civil.
Essa ação, entre outras, visava abrir caminho para a exploração agrária e agrícola, a expropriação e o esbulho da terra e a expansão minerária, madeireira e hídrica. A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6ªCCR) emitiu nota técnica afirmando a inconstitucionalidade da Medida Provisória 870/2019 e do Decreto 9.673/2019 (que transfere a Funai para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). Na nota técnica, afirma-se que as medidas presidenciais afrontavam as garantias indígenas na Constituição e violam o direito destes povos à consulta prévia, livre e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Além disso, ao transferir a demarcação de terras para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a Medida Provisória instaurava um conflito entre os interesses dos indígenas e das políticas agrícolas da União, assim como de ruralistas que apoiam o atual governo. Transcorridos 120 dias, qualquer Medida Provisória necessita ser referendada pelo Congresso Nacional para ter força de lei, mas a Medida Provisória no. 870/2019 não recebeu referendo, tendo em vista a colisão entre as alterações legislativas propostas e as garantias constitucionais para os povos indígenas no Brasil.
Frente à rejeição sofrida no Congresso, o presidente editou nova medida com mesmo teor, que foi posteriormente caracterizada como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, fazendo com que todas as atribuições da Funai, no âmbito do Ministério da Justiça, fossem retomadas. As manifestações de segmentos do movimento indígena foram incisivas neste período, criticando veementemente os pronunciamentos e ações do presidente brasileiro. Nesse sentido, Avanilson Karajá, em discurso durante a 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, afirmou:
O órgão indígena foi de propósito desmantelado porque o licenciamento ambiental, as demarcações e as políticas de consultas são consideradas obstáculos pela política econômica do governo. O mais perverso é o incentivo do arrendamento de nossas terras, uma prática ilegal que visa disponibilizá-las ao mercado, ao custo de nossa tradicionalidade.
O Direito à terra e seu significado para os povos indígenas
Em relação aos sentidos da terra e de sua função social, quando se trata de posse e usufruto exclusivo indígena, as disputas se concentram na possível destinação e nas possibilidades de exploração dos recursos naturais nelas contidos. Nos termos da Constituição Federal de 1988, Artigo 231, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
O mesmo artigo define como “terras tradicionalmente ocupadas” pelos indígenas “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Estabelece-se no referido artigo, ademais, a destinação destas terras: destinam-se à posse permanente dos indígenas, e apenas para eles se resguarda o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Não significa que não seria possível explorar recursos hídricos, potenciais energéticos e nem realizar a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas, mas tais ações dependem de expressa autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades indígenas que detém o usufruto sobre as terras.
Há uma importante dimensão da relação entre os indígenas e a terra, anunciada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2017), que se define pela experiência compartilhada sobre o território:
Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um ‘povo’. [..] O indígena olha para baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado transcendente; ele recebe seus direitos do alto (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 4).
O antropólogo afirma, ainda, que:
A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo da Terra. A relação entre terra e corpo é crucial. A separação entre a comunidade e a terra tem como sua face paralela, sua sombra, a separação entre as pessoas e seus corpos, outra operação indispensável executada pelo Estado para criar populações administradas (Ibid, p. 8).
Os argumentos apresentados permitem pensar na relevância das terras –demarcadas e resguardadas ao usufruto exclusivo – para os povos indígenas. Para estes, o vínculo com a terra não é de propriedade, isso porque ela é “o corpo” dos indígenas, que com ela possuem uma relação constitutiva, imanente. Do ponto de vista jurídico, os territórios indígenas são “bens da União”, e também nesse sentido não pertencem aos povos indígenas, mas são a eles destinadas, como direito imemorial, inalienável, imprescritível, e elas são indisponíveis para qualquer outro fim. Não se trata, assim, de ser dono da terra; tampouco se poderia, sob essa perspectiva, explorar recursos à exaustão, pelos próprios indígenas ou por terceiros. Sobre as lutas políticas nos dias atuais, Brighenti (2010, p.19) afirma que, no âmago das disputas, está a questão territorial, que para os indígenas diz respeito ao direito coletivo de posse e, sob o ponto de vista do direito individual, trata-se de um direito de propriedade.
Disputas em torno do sentido de produção e desenvolvimento
No mês de março de 2019, em discurso durante a 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, o indígena Avanilson Karajá, mencionado anteriormente, criticou as políticas indigenistas adotadas pelo governo Bolsonaro. Ele denunciou os discursos de ódio contra os povos indígenas, proferidos pelo governo, e a depreciação de seus modos de vida.1https://cimi.org.br/2019/03/onu-indigena-critica-politica-integracionista-bolsonaro/
Em nota divulgada em agosto do mesmo ano, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, FOIRN, repudiou os ataques de Jair Bolsonaro aos povos indígenas. Em especial, rebate a afirmativa de que tais povos seriam massa de manobra que inviabilizaria o progresso, e que a demarcação de terras indígenas, áreas de proteção ambiental, quilombolas e parques nacionais levaria à insolvência do Brasil. Diz a nota:
O presidente da República, Jair Bolsonaro, mais uma vez volta a atacar os povos indígenas e a Constituição Federal ao questionar nosso direito ao território como povos originários do Brasil. Se não bastasse envergonhar o Brasil mundialmente com suas falas preconceituosas e mentiras em relação às queimadas na Amazônia, agora acusa os povos indígenas de inviabilizarem o Brasil. Diante de afirmações tão grotescas, repercutidas pela mídia nacional, nós povos indígenas do Rio Negro, representados pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), demonstramos nossa indignação e repúdio a tais afirmações caluniosas. E completamos: o que inviabiliza o Brasil é a violência, a corrupção, o Estado paralelo promovido pelas milícias que dominam parte das grandes cidades do país e a falta de investimento em educação, saúde, cultura, esporte e infraestrutura2https://foirn.blog/2019/08/27/nota-publica-da-foirn-sobre-declaracoes-do-presidente-jair-bolsonaro/.
Em 28 de agosto de 2019, ocorreu uma reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, na qual os indígenas repudiaram a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 187, que visa possibilitar a exploração econômica em terras indígenas. Neste evento, Rogério Xukuru Kariri assim se expressou:
A questão é que o conceito de produção que a gente tem é diferente do conceito de produção do latifúndio. Nós temos uma concepção diferente [...] precisamos entender que os povos indígenas não são entraves ao progresso. Tudo que se tem numa sociedade não indígena, na indígena também tem. Eu acho que não é nada de mais ser respeitado por isso.
Os recortes anteriores dão conta de disputas em torno do sentido de desenvolvimento. Os indígenas recusam as afirmativas de que seus modos de vida inviabilizariam a economia nacional. Propagam-se, na esteira dos pronunciamentos governamentais, velhas assertivas de que “há muita terra para pouco índio”. Bolsonaro alia a este argumento o de que os indígenas desejariam muito mais os benefícios das tecnologias e da assistência do que a demarcação de suas terras. No site Justificando, em 15 de setembro de 2019, Carlos Eduardo Araújo destaca uma afirmativa do presidente Bolsonaro, de que aqueles que são contra a expansão econômica utilizam os indígenas como massa de manobra. Os mais emblemáticos pronunciamentos têm se dado em redes sociais, e nestas o presidente salienta que sua gestão será marcada pelo objetivo de “integrar estes cidadãos” à comunhão nacional. Em 15 de janeiro de 2019, o presidente afirmou, em rede social, no Twitter, que “mais de 15% do território nacional é demarcado como terras indígenas e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nesses lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por Ongs. Vamos juntos integrar esses cidadãos e valorizar todos os brasileiros”3https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1080468589298229253.
No Portal de notícias UOL, em 06 de agosto de 2019, noticiou-se falas do presidente Jair Bolsonaro relativas aos dados sobre desmatamento da Amazônia. Ele defende que questões como o licenciamento ambiental deveriam ser de responsabilidade dos estados, citando como exemplo o estado de Roraima: “Se eu fosse rei de Roraima, com tecnologia, em 20 anos teria uma economia próxima do Japão. Lá tem tudo. Mas 60% está inviabilizado por reservas indígenas e outras questões ambientais”.
Uma crítica ao viés integracionista do governo é apresentada pela Sexta Câmara do MPF4NOTA TÉCNICA No 1/2019-6aCCR. Quando fala da Medida Provisória editada por Bolsonaro, o órgão diz que a medida promove a restauração “da velha política integracionista” e “viola as peculiaridades culturais e direitos constitucionais” dos povos indígenas. Defende a Nota Técnica que “o índio não deve e não necessita ser integrado à sociedade brasileira, pois dela já faz parte desde sua gênese”. Segundo o texto, qualquer medida que promova o retorno da política indigenista integracionista vai contra a Constituição. Vale ressaltar, por fim, que várias pesquisas contemporâneas comprovam que as terras demarcadas estão entre as mais bem preservadas, o que mostra que os modos de vida indígenas não são obstáculos ao desenvolvimento, mas formas de manutenção da vida presente e futura.
A Constituição Federal de 1988 rompe com a perspectiva estatal da aculturação, cuja premissa era a assimilação indígena ao modo de ser da população majoritária. As transformações do direito ou das relações entre o Estado e os povos indígenas podem ser assim explicitada:
A Constituição de 1988 reconhece aos índios o direito de ser índio, de manter-se como índio, com sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Além disso, reconhece o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Esta concepção é nova, e juridicamente revolucionária, porque rompe com a repetida visão integracionista. A partir de 5 de outubro de 1988, o índio, no Brasil, tem direito de ser índio (SOUZA FILHO, 2010, p. 106-107).
O reconhecimento destes direitos no texto constitucional consolida garantias individuais e coletivas de todos os povos, base essencial de qualquer direito humano. A análise dos recortes de pronunciamentos do presidente, aliada a uma leitura mais ampla do que vivemos, mostra que as forças são mobilizadas, de maneira especial, para definir o destino de recursos ambientais, minerais e territoriais resguardados aos povos indígenas por meio de um dispositivo constitucional, mas intensamente cobiçados para expansão da produção agropecuária.
A Constituição Federal também estabelece que as terras indígenas compõem o conjunto de bens da União (Art 20, XI) e que, portanto, ninguém mais, além dos povos indígenas, poderá ocupá-las (exceto nos casos previstos no texto constitucional, comprovando-se relevante interesse público ou risco à soberania, por exemplo). Ou seja, as terras ocupadas e demarcadas para usufruto dos Povos Indígenas devem ser protegidas e fiscalizadas pelos órgãos do Estado brasileiro e, com isso, o governo deveria agir para evitar o esbulho, a exploração e a depredação, já que elas não compõem áreas devolutas ou a serem ocupadas, transferidas, griladas e devastadas por terceiros.
O Tripé de uma política anti-indígena
Apesar de a Constituição Federal do Brasil assegurar, em seus artigos 231 e 232, os direitos fundamentais dos povos indígenas, e apesar destes serem recepcionados internacionalmente através da Convenção 169 da OIT e da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o governo brasileiro desconsidera todas as regras, normas e convenções e passa a implementar uma política que visa a integração cultural e a expropriação territorial dos povos indígenas.
Diante de uma política de perspectiva genocida, é importante reafirmar os direitos fundamentais dos povos indígenas: o primeiro é a declaração do reconhecimento ao direito à demarcação e garantia (com as consequentes proteção e fiscalização) de todas as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, caracterizando-o como originário e imprescritível, ou seja, há o reconhecimento de um direito que antecede ao processo de colonização do país e que não prescreve, não se esgota ao longo do tempo e, além disso, garante aos povos o usufruto exclusivo destas terras, inalienáveis e indisponíveis; o segundo é o reconhecimento constitucional de que os povos poderão se organizar, se manifestar e viver de acordo com suas culturas, costumes, crenças e tradições, reconhecendo-se portanto o direito às diferenças étnicas; o terceiro é o reconhecimento dos povos e suas comunidades como sujeitos de direitos, rompendo-se com qualquer perspectiva integracionista e tutelar – desse modo, supera-se a visão de que os povos e suas lideranças seriam relativamente capazes e assegura-se, como garante desde 1988 a Constituição, a plena capacidade jurídica dos povos, de maneira que eles devem ser acionados em todas as demandas jurídicas contra eles interpostas ou por eles propostas, sem necessidade de intermediação do órgão indigenista.
O governo de Jair Bolsonaro organiza a sua política indigenista alicerçada no tripé: desconstitucionalização dos direitos, desterritorialização dos povos e promoção de ações que conduzam à lógica da assimilação e integração dos indígenas à sociedade brasileira. Retoma-se, de modo contundente, teses e práticas do período ditatorial dos governos militares, ignorando-se o disposto na Constituição Federal atual.
No âmbito do Poder Executivo, as ações colocadas em curso dão forma a um projeto de exploração intensiva de todas as terras indígenas, demarcadas ou não, impondo-se, de um lado, a devastação dos recursos ambientais, minerais e hídricos como alternativa econômica, e de outro, a deslegitimação das conquistas históricas de reconhecimento, respeito e valorização das diferenças étnicas, culturais e territoriais. Claramente se propõe o desmantelamento de todas as ferramentas jurídicas de promoção e implementação das políticas públicas para os povos indígenas e a interrupção dos avanços que vinham sendo construídos para o fortalecimento do protagonismo e da autonomia dos povos.
O governo de Bolsonaro age como propulsor das invasões das terras, na medida em que inviabiliza qualquer possibilidade de demarcá-las, abrindo mão da responsabilidade de preservar os bens do Estado, permitindo a expansão da agropecuária, do garimpo, da mineração, da exploração de madeira, da pesca predatória, do loteamento e da grilagem e consolidando a gradativa transferência do patrimônio público para a iniciativa privada.
A Funai vem sendo reestruturada para desempenhar a função de controladora das demandas indígenas e atravancar os procedimentos de demarcação de terras. O órgão indigenista está institucionalmente aparelhado por delegados da Polícia Federal, policiais aposentados, militares, pastores, servidores e assessores notadamente anti-indígenas, que exercem uma gestão em oposição aos direitos constitucionais. Ao presidente da Funai tem competido, entre suas funções, dar palestras a fazendeiros que acabam por instrumentalizar ações políticas e jurídicas contra as lutas indígenas. Medidas impeditivas passaram a ser constantes, na tentativa de conter as ações que visassem a defesa dos interesses indígenas, assim como ameaças de criminalização e controle de toda e qualquer comunidade que tomasse a iniciativa de lutar pela terra. A Funai, através de seus dirigentes, passou a atender expressamente aos ruralistas, mineradores, garimpeiros e madeireiros que visam a apropriação dos bens existentes dentro dos territórios, em detrimento das lideranças de povos e comunidades indígenas. Por conta disso, a Funai editou a Instrução Normativa de Número 09/2020, na qual estabelece regramentos para aqueles que se sentirem afetados por demarcações de terras e requeiram título de posse ou propriedade de tais áreas.
E para dar aparente legalidade a todas as medidas anti-indígenas, o governo se amparou no Parecer 001, da Advocacia Geral da União/AGU, que vigorou desde sua edição, no ano de 2017, até o mês de junho de 2020. O referido parecer adotava uma lógica de desqualificação dos direitos constitucionais indígenas, a partir das 19 condicionantes do julgamento da ação contra a demarcação da terra Raposa Serra do Sol, as quais se referiam tão somente aquele caso concreto – portanto, não se vinculariam a outros procedimentos demarcatórios. Mas, de forma ardilosa, passaram a ser utilizadas como instrumento jurídico, político e administrativo de regramento da política indigenista oficial.
Além das condicionantes, a AGU impôs a tese do Marco Temporal nos procedimentos de demarcação de terras futuras, o que também contraria o julgamento referido e as decisões do STF sobre o tema. No entanto, este parecer foi suspenso pelo ministro Edson Fachin, do STF, depois que a comunidade Xokleng ingressou com uma ação cautelar incidental pedindo que o parecer fosse suspenso até o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caracterizado como de Repercussão Geral. Num mesmo sentido, o Ministério Público Federal (MPF) no estado de Mato Grosso ingressou com uma ação pedindo a suspensão dos efeitos da Instrução Normativa de Número 09/2020. A Justiça Federal atendeu ao pleito do MPF no que se refere às terras indígenas de Mato Grosso e aguarda-se, a partir de agora, que essa decisão seja extensiva para as demais regiões do Brasil.
Diante das decisões, mesmo que parcialmente concedidas pelo Judiciário, o presidente da Funai, amparado pela bancada ruralista, anunciou que o governo federal adotará outras medidas no sentido de “apaziguar” a questão indígena. No entender dele, os indígenas e seus direitos são um perigo e devem ser contidos. A paz que o presidente da Funai propaga diz respeito à concretização de especulações e invasões territoriais. Trata-se de apaziguar ânimos de quem defende grilar terras de usufruto exclusivo dos povos indígenas, permitindo a sua ampla e irrestrita exploração. A decisão que pretendem tomar será a de revogar o Decreto 1775/1996, que regulamenta o procedimento de demarcação atualmente em vigor no país. No seu lugar, visam impor os mesmos regramentos contidos no Parecer 001/AGU. Desejam regular as demarcações antes do STF julgar o processo de repercussão geral (RE 1.017.365), que trata de parcela da demarcação da terra indígena Ibirama-La Klãnõ, reconhecida como de posse permanente do povo Xokleng.
A resistência dos povos indígenas torna-os sementes de esperança
O Brasil é, dentre todos os países no mundo, um dos mais privilegiados em termos de pluralidade de povos e de culturas. Quando ocorreu a invasão europeia, viviam nas terras denominadas – mais tarde – de Brasil pelo menos seis milhões de pessoas, pertencentes a mais de 900 diferentes povos. Eles habitavam todas as regiões, estavam adaptados aos biomas, ao clima, à geografia, às condições ambientais e mantinham vínculos de pertencimento e modos específicos de ser e conviver dentro de seus territórios originários. A relação com os colonizadores não foi mansa, pacífica e sem resistência. Do lado dos invasores houve a imposição da espada e da cruz. Por parte dos povos originários, houve perplexidade diante de pessoas estranhas, com hábitos sujos, brutos e devastadores. Resistiam, mas a força das armas e a imposição da violência física resultaram em guerras, escravidão, destruição e genocídios.
Passados 520 anos, os povos originários – denominados de índios – se fazem presentes, reduzidos em relação ao passado, mas construindo caminhos alternativos dentro de um Estado ainda mais excludente, violento e ambicioso. Vivem hoje no país pelo menos 305 povos, falantes de pelo menos 210 línguas. Reivindicam a demarcação de 1200 áreas de terras, tendo uma população de aproximadamente um milhão de pessoas. A pluralidade de povos e culturas não pode ser ignorada e torna todos responsáveis em assegurar, na organização do Estado brasileiro, um conjunto de garantias legais voltadas para o respeito, a proteção e a promoção dos direitos indígenas.
No decorrer de todo o processo de expansão colonialista, aqueles que gerenciavam o Estado estabeleceram, como regra, o confronto para combater os povos originários e negar-lhes os direitos a suas culturas e territórios. A partir de suas lutas e enfrentamentos, os povos impuseram limites e os governantes passaram, ao longo do tempo, a reavaliar estratégias e redefinir práticas de intervenção, convencendo-se de que deveriam estabelecer algum tipo de relação que não fosse tão somente a guerra e o extermínio físico.
Os governantes, de modo paulatino, acabaram adotando medidas administrativas – especialmente no início do século 20 — e desencadearam ações para a localização, identificação e remoção dos indígenas aos aldeamentos ou reservas e, nestes espaços artificiais, impuseram uma política voltada à pacificação e posterior integração dos índios à “comunhão nacional”. E, mais uma vez na história, não houve alternativa que não a resistência contra a política integracionista e pela recuperação de seus territórios, já que gradativamente estavam sendo invadidos ou oficialmente ocupados.
A resistência dos povos indígenas é um capítulo memorável e pouco enfatizado na história do Brasil. Não fossem as suas variadas formas de luta, teriam todos sido exterminados ou integrados, ao longo desses mais de 500 anos de colonização. A lógica integracionista e assimilacionista perdurou até os anos 1970, quando os indígenas, com apoio significativo de organizações da sociedade civil, de igrejas – que tinham uma visão progressista, respeitosa e libertadora –, organismos internacionais, de entidades e de movimentos populares, desenvolveram um intenso movimento de articulação, através das grandes assembleias que reuniam líderes de diferentes e distantes povos. Constitui-se nessa década um marco importante de exercício do protagonismo indígena frente ao Estado brasileiro, que foi a conquista do Capítulo VIII, artigos 231 e 232, presente no texto constitucional de 1988.
Com o advento da “Constituição Cidadã”, os povos passaram a exigir que seus direitos fossem assegurados. E, ao longo das décadas – anos de 1990 até 2016 – o Movimento Indígena, no país inteiro, se fortaleceu e impulsionou um intenso processo de organização e articulação pela demarcação de terras, por políticas públicas diferenciadas e pelo direito de serem povos com suas formas próprias de vida, seus conhecimentos e suas organizações sociais, reivindicando que estas deveriam ser reconhecidas e respeitadas não como “simples”, nem “primitivas”, nem “precárias” ou “ultrapassadas”, como se costumava pensar, mas porque possuem coerência, consistência, força, racionalidade, dinamicidade.
Foi nesse contexto – pós-constituinte, décadas de 1990 até o ano de 2016 – de um vivo protagonismo que os povos ensinaram a todos (com quem convivem, estudam ou que deles se aproximam) a confrontar alguns dos estereótipos que foram produzidos, bem como sentiram-se autorizados a manifestar suas impressões sobre a sociedade e cultura ocidentalizada. Cabe a todos, portanto, o exercício de uma crítica radical às formas pelas quais se colocam em ação mecanismos acadêmicos, midiáticos, jurídicos e políticos que subordinam as culturas indígenas. Para essa finalidade, um bom começo é prestar mais atenção aos modos como as pessoas se referem aos povos e reconhecer que a maioria dos estereótipos produzidos servem para tranquilizar e confirmar uma suposta superioridade dos colonizadores e uma “certa” convicção de que sempre os brancos são sensatos e que o problema está nos indígenas. Basta ver como as pessoas, em geral, se sentem autorizadas a definir quem são os índios, onde devem viver, como devem viver, o que podem desejar para seu futuro. E isso leva as pessoas a imaginar que os direitos indígenas são uma espécie de concessão ou dádiva da sociedade envolvente para com eles, como se esses direitos fossem inaceitáveis ou configurassem um tipo de privilégio que, por conseguinte, é continuamente questionado.
Qualquer relação respeitosa que se pretenda ter com os povos indígenas necessariamente passará pela demarcação e garantia de suas terras. Não há como assegurar a vida, as culturas e a existência digna desses povos fora de seus territórios. Mas, evidentemente, esta garantia não é suficiente. E, nos últimos 30 anos, os povos – para além da luta pela terra, que é ainda muito conflituosa e emblemática – têm buscado participar de forma ativa e altiva na formulação e execução de políticas públicas a eles destinadas. Compõem conselhos municipais, estaduais e nacionais, onde exercem o controle social e propõem políticas assistenciais, de promoção e proteção à vida, à saúde, à educação e à autossustentação.
Os povos indígenas tornaram-se incansáveis na promoção e manifestação de suas culturas, crenças e tradições. Em grande medida, romperam com as referências culturais e as formas de representação produzidas sobre eles, que levavam as pessoas a pensarem que eles são frágeis, menos desenvolvidos, menos cultos, menos civilizados, menos dispostos ao trabalho e que suas culturas são primitivas, menos complexas, menos valiosas. Tudo isso foi possível por conta da presença dos povos indígenas nas mais variadas instâncias dos poderes públicos, junto à sociedade envolvente, nas universidades e nas lutas populares e políticas.
Há também que se reconhecer que os povos originários, suas organizações, seus movimentos de resistência e suas lutas, apesar de todos os desafios ainda existentes, pautaram a sociedade sobre a necessidade de que seus direitos deveriam ser respeitados e assegurados, bem como propiciaram a reflexão sobre a beleza da multiplicidade das culturas e de suas contribuições para o país. Os Acampamentos Terra Livre, realizados anualmente desde 2003, geralmente no mês de abril, são uma expressão significativa da organização, articulação e mobilização dos povos na luta pela garantia de seus direitos fundamentais.
Através desse e de outros eventos sistemáticos, os indígenas evidenciam suas cosmovisões, suas vitalidades, seus conhecimentos medicinais, os usos terapêuticos das plantas e o modo respeitoso com o qual se relacionam com a terra e com os recursos naturais. Para além de tudo, fomentaram a discussão sobre a necessidade de se pensar coletivamente políticas e filosofias de vida vinculadas ao Bem Viver.
A análise evidenciou que estão em disputa não apenas os sentidos da terra, como também suas finalidades e usos. A terra é vista, por um lado, como recurso de vida, destinada à posse indígena e sob proteção da União, e por outro, como fonte de riquezas, de recursos para exploração e expansão do agronegócio, sob a forma da propriedade privada. O ressurgimento de discursos governamentais integracionistas, comuns no período ditatorial brasileiro e por meio dos quais se vislumbrava a dissolução das diferenças e a inserção indígena na lógica de vida ocidental, colabora agora com o propósito de desobstrução dos territórios (que para o governo deveriam ser explorados com ou sem os indígenas). Os movimentos indígenas, por sua vez, defendem o respeito aos seus modos ancestrais de pensar e de viver, suas relações com a terra e os sentidos de interdependência entre os seres, que assegura e regula a vida de cada um.
O governo Bolsonaro parece não se conformar com o fato de haver, na Constituição Federal de 1988, direitos que são caracterizados como fundamentais, que são reconhecidos como originários, indisponíveis, inalienáveis e imprescritíveis. Ao que parece, num contexto de graves ataques a estes direitos fundamentais e de violências sistêmicas contra os indígenas, de invasões das terras e de tragédia ambiental causada pelo desmatamento, por incêndios e pelo loteamento de áreas públicas, somente o Poder Judiciário poderá impor limites ao governo e às teses genocidas que embasam sua política indigenista.
REFERÊNCIAS
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os involuntários da Pátria. Elogio do subdesenvolvimento. Edições Chão da Feira Caderno de Leituras, n. 65, Maio de 2017. Disponível em: https://chaodafeira.com/catalogo/caderno-n-65-os- involuntarios-da-patria/
Roberto Antonio Liebgott | Brasil |
Formado em Filosofia e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, coordenador conselheiro do Conselho Indigenista Missionário - Regional Sul