"Migração haitiana — a oportunidade do Brasil de se tornar mais solidário com o mundo"
Entrevista com o professor e advogado Paulo Abrão, Secretário Nacional de Justiça do Brasil entre 2011 e 2014
por Daniel Martins e Felipe Moulin
agosto de 2023
A migração haitiana no Brasil foi uma chance de atualizarmos nossa política e governança para migração e refúgio?
Paulo Abrão: Esse momento significou uma virada paradigmática dentro do Estado brasileiro em relação à matéria migratória. Como vocês sabem, vínhamos de um período demasiadamente alargado de vigência do Estatuto de Estrangeiro, concebido e elaborado durante a Ditadura Militar, totalmente impregnado por uma doutrina de segurança nacional, de "estrangeiros como inimigos" e os elementos de segurança como valores superiores aos princípios dos direitos humanos. Uma lógica de alguma forma muito conveniente para o Estado brasileiro, que adotava um discurso de um país plural e não discriminador, cuja construção histórica tenha se dado pela recepção de diferentes povos e, portanto, o próprio brasileiro seria resultado dessa miscigenação.
Então, ter uma legislação “suficiente”, com medidas pontuais do Estado brasileiro em termos de receptividade de grupos populacionais migrantes seria uma demonstração cabal de que nossa sociedade era miscigenada, e não xenófoba. Foi um discurso ideológico muito bem pensado. Mas, na prática, do ponto de vista dos direitos humanos, lidávamos com situações abusivas de discriminação permanente, de falta de um sistema de integração local, ausência de vistos humanitários e com a ausência de uma política nacional de migração que implicava uma dinâmica social de diferenciação entre “migrantes de primeira e de segunda classe”, entre o migrante desejável e o indesejável.
Lidávamos com situações abusivas de discriminação permanente, de falta de um sistema de integração local, ausência de vistos humanitários e com a ausência de uma política nacional de migração que implicava uma dinâmica social de diferenciação entre “migrantes de primeira e de segunda classe”, entre o migrante desejável e o indesejável
Em 2011, fui convidado a assumir a Secretaria Nacional de Justiça, e umas das áreas sob minha supervisão era o Departamento de Migrações. Já estava acumulada uma demanda para que fizéssemos uma reforma da legislação do Estatuto do Estrangeiro, por ser uma legislação que gerava muitos obstáculos para regularização de estrangeiros no Brasil. Além disso, era uma política tímida frente a contribuição solidária que o Brasil podia prestar ao mundo.
Enquanto países centrais e algumas capitais na Europa chegam a ter 20% da sua população composta de população estrangeira, o Brasil possuía menos de 1%. Isso confrontava o discurso de que nós éramos um país aberto à migração. Na prática, esse fluxo era impedido por obstáculos legais. Então, já havia a intenção de trazer um enfoque de direitos humanos para a política migratória brasileira, buscando um Brasil mais relevante frente às grandes crises migratórias globais, mais solidário e mais coerente e consistente com os nossos discursos oficiais na política externa.
Neste mesmo período, nos confrontamos com o fluxo da migração haitiana no norte do Brasil decorrente do terremoto de 2010 e situação de violência no Haiti. Havia ali uma particular responsabilidade para o Brasil, por ter coordenado a MINUSTAH [Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti, 2003 – 2017] por anos. Aliás, sem ter resolvido o problema e tendo deixado um rastro de violações contra os direitos humanos. São muitas as histórias dos filhos não reconhecidos dos militares, nenhum deles reconhecido, e o episódio do massacre das Forças Armadas Brasileiras em Cite Soleil, sem nunca tendo sido havido responsabilizações individuais. Vimos ali naquela imigração haitiana uma oportunidade de atualizar e abrir o debate sobre os direitos humanos dos migrantes.
Foi um fluxo migratório inédito no Brasil?
Foi um fluxo migratório extraordinário, inédito na nossa história pelas razões que se apresentavam. A migração intra-regional, na América do Sul, normalmente acontece entre os países de língua espanhola. Ou é uma migração Sul-Norte. O Brasil não é um destino natural desse fluxo. Nós nunca tínhamos enfrentado uma migração que extrapolasse os países com que temos fronteira terrestre, como no caso do fluxo dos bolivianos e paraguaios. Principalmente considerando o alto volume concentrado num determinado tempo, como foi a migração haitiana que se iniciou no final de 2010 mas que se intensificou a partir de 2011.
O último grande fluxo de migração foi no século passado ou do final do anterior, então, era migração europeia, branca. A migração desse tempo se pode dizer que a única política nacional migratória oficial, a política migratória dirigida ao embranquecimento. O Estado decidiu que era preciso embranquecer a população brasileira e por isso estimulou a vinda de italianos, alemães, poloneses, espanhóis, entre outros. Ganharam terras para se instalarem no sul e sudeste.
Eu assumi a Secretaria Nacional de Justiça em janeiro de 2011 e essa migração haitiana tinha disparado no final de 2010, em números ainda bastante reduzidos. Lembro que em meados de dezembro de 2010 começa a repercutir na imprensa o fluxo migratório de haitianos. Naquele momento, pouco mais de 1000 pessoas entravam no Brasil por Tabatinga, no Amazonas. De repente começou a aparecer uma comunidade negra expressiva em Manaus e isso gerou um “estranhamento”, uma reação social. As pessoas queriam saber quem eram, como entraram, se estavam regulares ou não. A Polícia Federal gerou então um alerta, e a primeira resposta institucional foi não deixar entrar, fechar a fronteira do Brasil.
De repente começou a aparecer uma comunidade negra expressiva em Manaus e isso gerou um “estranhamento”, uma reação social. As pessoas queriam saber quem eram, como entraram, se estavam regulares ou não. A Polícia Federal gerou então um alerta, e a primeira resposta institucional foi não deixar entrar, fechar a fronteira do Brasil
Fecharam a Ponte da Integração, que liga Inãpari, no Peru, à cidade brasileira de Assis. Essa foi a primeira resposta institucional do Estado Brasileiro. Gerou uma forte repercussão internacional: onde estava aquele discurso de país aberto, humanitário, solidário?
Aquele primeiro fluxo era composto de haitianos com alta qualificação profissional mas que migravam por falta de oportunidades no Haiti, que estava destruído. Porém, tinham dinheiro para custear o deslocamento e, especialmente, tinham acesso à informação. A rota saía do Haiti rumo à República Dominicana, de lá, avião até Quito, no Equador — único país na América Latina que até então não requisitava visto de nenhum país. De Quito, tomavam ônibus para cruzar o Peru ou a Bolívia até chegar no Brasil.
Estes primeiros migrantes tinham recursos e dinheiro para trazer as malas, dormir dois ou três dias em Quito e chegar na fronteira com seus bens e com suas famílias. E, sobretudo, sabiam que pela lei, pelo Direito Internacional dos Refugiados, quando uma pessoa chega na fronteira de qualquer país e declara pedido de refúgio no controle migratório, a obrigação internacional do país é deixar entrar. O princípio é: a priori, protege. Depois avalia se o pedido de refúgio será aprovado ou não. Mas o pedido já se processa com a pessoa dentro do território nacional.
Em tese, a obrigação da Polícia Federal — quem controla o posto migratório — quando qualquer pessoa pedir refúgio, é deixar entrar e iniciar o protocolo de refúgio e enviá-lo para que o Comitê Nacional de Refugiados (CONARE) decida sobre o mérito. A Polícia Federal ficou, então, diante de um impasse, pois havia recebido ordem de não deixar entrar, embora soubesse que, legalmente, ao declarar refúgio, a pessoa tinha o direito de entrar.
Onde estava aquele discurso de país aberto, humanitário, solidário?
Foi muito curiosa a primeira reunião sobre o tema no CONARE, que integra o (antigo) Departamento de Estrangeiros, na estrutura da Secretaria Nacional de Justiça. O CONARE é composto por um representante da Polícia Federal, um do Ministério da Justiça, um do Ministério das Relações Exteriores, um do Ministério do Trabalho, um do Ministério da Saúde e um representante da sociedade civil, com assento de observação da ACNUR [Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados]. A primeira resposta do conselho foi limitada, vergonhosa, podemos dizer. A preocupação era puramente burocrática, discutir se o órgão tinha ou não condições de processar um alto número de pedidos de refúgio. Na reunião, aprovou-se que o Secretário Executivo do CONARE se deslocasse até a fronteira para, ao lado da Polícia Federal, automaticamente negar o pedido de refúgio. Uma análise célere sem precedentes, uma abordagem puramente burocrática.
Uma completa inversão?
Uma medida totalmente incomum, nunca havia acontecido de o representante do CONARE se instalar no próprio posto migratório para negar pedidos em tempos real. Nunca vi a estrutura do estado ser tão eficiente e diligente. A preocupação era proteger o sistema do refúgio, não proteger as pessoas. A vida humana não estava na centralidade desse procedimento, a vítima não era o centro das atenções. A preocupação era como proteger a burocracia de uma demanda crescente. Só que os fatos sociais são sempre mais fortes do que a administração, mais forte que a vontade burocrática do Estado, pois esse fluxo migratório já estava organizado e ele só se intensificou.
A vida humana não estava na centralidade desse procedimento, a vítima não era o centro das atenções. A preocupação era como proteger a burocracia de uma demanda crescente. Só que os fatos sociais são sempre mais fortes do que a administração, mais forte que a vontade burocrática do Estado, pois esse fluxo migratório já estava organizado e ele só se intensificou
Com a ponte de Iñapari fechada, as pessoas começaram a entrar por outro lado, uma fronteira totalmente porosa na Amazônia, notoriamente sem condições de controle de pessoas. Quem encontrou, num primeiro momento, obstáculos para entrar em Inapari, começou a descer a pé pela floresta, para chegar em Cobija, na Bolívia, e entrar por Epitaciolândia, no Acre.
Veja como uma decisão burocrática — voltada para proteger a institucionalidade do Estado em sua incapacidade de processar os seus deveres e suas obrigações previstas nas convenções internacionais — impacta no risco à vida das pessoas. Porque essa rota terrestre até a Bolívia começa a ser fonte de exploração dos coiotes, que se ofereciam a levar os migrantes por outras vias.
Então surge um mercado paralelo e ilegal, de alta exploração, dinheiro e abusos.
Nesse momento já havia clareza sobre porquê se escolhia o Brasil como país de destino?
O Brasil estava se vendendo ao mundo como uma nação próspera, com crescimento econômico, diminuição do desemprego, programas sociais para os mais pobres e estava com muita visibilidade internacional. O presidente Lula deu uma grande visibilidade internacional ao país, o Brasil sediaria a Copa do Mundo, as Olimpíadas e a Conferência Rio+20. Lula tinha terminado o mandato com alta popularidade e com a economia crescendo. Ele também tinha feito uma ação de política diplomática levando a seleção brasileira para jogar no Haiti. Tudo isso gerou um imaginário social muito forte no Haiti.
"O Brasil era a nação amiga que nos ajudava aqui no Haiti, então vamos para o Brasil que ele vai nos acolher." No imaginário do haitiano, o Brasil era a terra da prosperidade, que se tornaria a terra da oportunidade.
Ao assumir a presidência do CONARE, identifiquei que estávamos de frente para outras boas oportunidades. A primeira: estabelecer uma política migratória em que o Brasil pudesse ser mais solidário com o mundo
Diante desse cenário, ao assumir a presidência do CONARE, identifiquei que estávamos de frente para outras boas oportunidades. A primeira: estabelecer uma política migratória em que o Brasil pudesse ser mais solidário com o mundo.
A segunda, a de confrontar os limites da legalidade autoritária do Estatuto do Estrangeiro promulgado durante a ditadura militar e construir uma nova legislação, mais atual e condizente com a ambição do país ser um player global.
A partir daquele momento, buscamos estabelecer outra lógica, a de que deveríamos sim permitir a entrada de todos, isso era um dever humanitário e que essa migração seria um fator positivo para o nosso ciclo de crescimento econômico. Foi decisão política da minha secretaria no Ministério da Justiça. O fluxo de migrantes estava crescendo e era preciso uma resposta institucional coordenada e articulada. Já estávamos com uma média de 100 pessoas por dia passando pela fronteira — praticamente 3000 migrantes por mês.
Uma decisão política, numa estrutura burocrática, fácil de ser aceita?
Foi dificílima, resultou em ressentimento em várias outras áreas. Havia resistência institucional de setores do Itamaraty, da Polícia Federal e também do Ministério do Trabalho. Para a Polícia Federal essa era uma brecha para entrada do crime organizado: "A gente não sabe quem são essas pessoas, se eles têm histórico criminal."
Acho que uma das coisas mais horríveis que eu escutei na vida, veio de uma alta autoridade do Itamaraty durante esses diálogos institucionais, quando disse: “O Brasil é sim um país solidário, a gente está aberto à imigração, e podemos até criar uma cota anual para receber 100 mil imigrantes diferentes. Mas não é esta a migração que nos interessa.” Isso me chocou na hora pelo racismo explícito em plena reunião na Casa Civil.
O Ministério do Trabalho também tinha que administrar o discurso de que abrir a entrada de estrangeiros significaria concorrência no mercado de trabalho para os trabalhadores brasileiros. Lembremos que importantes centrais sindicais brasileiras compõem o Conselho Nacional de Imigração.
A arquitetura normativa e institucional ali era a de ter uma política migratória controlada, na qual se aprova cada pedido de visto de trabalho. Não havia ferramentas para regularizar aquele tipo de demanda, com ênfase humanitária e massiva
A arquitetura normativa e institucional ali era a de ter uma política migratória controlada, na qual se aprova cada pedido de visto de trabalho. Não havia ferramentas para regularizar aquele tipo de demanda, com ênfase humanitária e massiva. E a imagem do país já começava a repercutir negativamente: "O Brasil está detendo, na fronteira, migração humanitária, de pessoas fugindo de desastres naturais".
De certa forma, a burocracia era empurrada a criar saídas para solucionar problemas que ela mesmo gerava. A preocupação de muitos era a de que adotar uma postura acolhedora (nada mais que cumprir as obrigações internacionais do país) estimularia a vinda de mais gente, e haveria uma “crise migratória”. Típico discurso do medo. Eu me perguntava, crise migratória do quê? Se o Brasil não tem nem 15%, nem 10%, nem 5%, nem 1% de migrantes. Um país continental que estava crescendo economicamente.
A crise estava em retê-los na fronteira, contrariamente ao direito internacional. Estava na falta de uma legislação atual que previsse um visto de caráter humanitário, na falta de estrutura do departamento de estrangeiros, na falta de políticas públicas de integração que pudesse inseri-los naturalmente na cadeia produtiva do país e dar amplo acesso aos serviços, a pagar impostos normalmente e poder contribuir com novos conhecimentos e culturas que agregavam valor ao país.
Então, mesmo o CONARE dizendo que não se tratava de refúgio, as pessoas continuaram chegando, solicitando refúgio e entrando por outras brechas da fronteira. Determinamos que a Polícia Federal procedesse com a entrega do protocolo de pedido de refúgio e o enviasse para a decisão do CONARE. Para mim o desafio era como iríamos regularizar a permanência das pessoas, protegê-las e aproveitar essa oportunidade da melhor forma para o país. Mas se o pedido de refúgio era negado, teria que mandar embora. E acabariam ingressando por outras vias e ficando na exclusão e marginalidade dentro do país, vulneráveis a todas as redes de exploração ilegais. Portanto, o que havia de interesse público era uma necessidade de regularização dos migrantes.
Aceitar o pedido de refúgio era uma opção?
Classicamente são dois requisitos para a solicitação de refúgio: por fundado temor de perseguição política, ou por grave e generalizada violação de direitos humanos. E o CONARE não aceitava a justificativa da concessão de refúgio por razões de generalizada violações de direitos humanos porque entendia que a motivação dessa migração era uma crise ambiental, um desastre ambiental — o terremoto — então essa seria uma migração mais tipicamente econômica. Os migrantes haitianos vinham para fazer um novo projeto de vida.
Até chegamos a abrir o debate sobre a possibilidade da inclusão como refúgio ambiental. Por ter pessoas que têm que se refugiar e proteger suas vidas por razões de desastres ambientais. Vincular refúgio e mudança climática. Mas também não passou, era uma tese demasiadamente ousada e vanguardista naquele momento.
Então, como disse, o antigo Estatuto do Estrangeiro deu origem ao Conselho Nacional de Imigração [CNIg], vinculado ao Ministério do Trabalho. A lógica da migração brasileira era condicionada a uma migração de trabalho, pois isso filtrava quem tinha qualificação profissional para entrar no Brasil e permitia decidir o perfil do migrante “desejável e o indesejável”. Mas havia na resolução do CNIg uma pequena brecha administrativa para resolver situações muito pontuais do passado. Uma resolução administrativa que declarava que casos omissos na lei poderiam ser aprovados.
A gente pegou essa resolução — provavelmente feita em algum momento para privilegiar alguém — e a aplica para os haitianos, argumentando: "Aqui se trata de caso omisso: se não é refúgio, grave violações de direitos humanos, fundado temor de perseguição política, trabalho, visto de estudo, caso diplomático, então se trata de caso omisso. Se é caso omisso, vamos regularizar por decisão do CNIg.”
Tivemos que fazer uma triangulação, os pedidos chegavam no CONARE dentro do Ministério da Justiça na forma de pedido de refúgio (que não eram concedidos), então, mandávamos para o CNIg, no Ministério do Trabalho, que se reunia para declarar a concessão de um visto de residência e devolver para o Departamento de Estrangeiros regularizar.
Montamos uma força tarefa interministerial e fomos ao Acre em missão para um mutirão de assistência social imediata de regularização de documentos, para garantir o devido acolhimento de uma migração organizada e orientada para a integração local
Enquanto isso, montamos uma força tarefa interministerial e fomos ao Acre em missão para um mutirão de assistência social imediata de regularização de documentos, para garantir o devido acolhimento de uma migração organizada e orientada para a integração local. Naquele momento, a migração em Tabatinga estava muito residual, a rota praticamente se concentrou por Epitaciolândia, no Acre, com o posto fronteiriço dentro do Brasil.
Imaginem Epitaciolândia — uma pequena cidade do norte do país —; houve semana de pico em que mais de 1000 pessoas entraram. Não havia estrutura na cidade para esse acolhimento. Os haitianos estavam acampados nas praças, então tivemos que montar uma estrutura de emergência. Coordenei a missão interministerial e eu não queria uma estrutura militar, não queria aquelas tendas militares que lembram campos de refugiados de guerra. Tomei intencionalmente a decisão de que não queria o envolvimento das Forças Armadas. Não queria ainda mais a lógica da militarização, pois já enfrentava com a PF uma discussão difícil sobre segurança, porque para eles "o Brasil vai sediar grandes eventos, isso poderia ser porta de entrada de terroristas."
Então, contamos com a sociedade civil organizada, contratamos uma empresa local, reformamos um galpão da cidade, compramos colchões, montamos banheiros coletivos enormes, uma cozinha solidária. O migrante lá mesmo já ganhava o protocolo de refúgio para esperar o trâmite de aprovação do visto de residência, e uma lista com os nomes era submetida para o CNIg aprovar a residência e mandar o processo de volta ao Ministério da Justiça. Nossa proposta era combinar uma entrada regularizada com uma destinação de trabalho, algum destino em que o migrante já pudesse ser integrado socialmente, em uma rede de acolhimento, com integração a partir de um cadastro nacional de oportunidades de trabalho.
Nossa proposta era combinar uma entrada regularizada com uma destinação de trabalho, algum destino em que o migrante já pudesse ser integrado socialmente, em uma rede de acolhimento, com integração a partir de um cadastro nacional de oportunidades de trabalho
Naquela época, as taxas de desemprego no país tinham caído para os números mais baixos. Não foi difícil viabilizar isso pois, de fato, a gente estava tendo uma expansão da construção civil nas obras dos grandes eventos.
Os migrantes foram também trabalhar no setor hoteleiro na região sul, pois o mercado de trabalho brasileiro não tinha profissionais que falassem francês, então isso beneficiou muito o setor turístico, especialmente o setor hoteleiro.
Essas rotas de migração tem alta comunicabilidade, então alguns dos migrantes congoleses e senegaleses, que antes tentavam entrar no Brasil pelo aeroporto de Guarulhos e eram barrados e colocados no voo de volta, começaram a fazer uma outra rota de saída da África. Subiam até a Espanha, pegavam o voo para Quito e se somavam aos haitianos na entrada do Brasil. Então, de repente começaram a chegar alguns congoleses, senegaleses e até alguns dominicanos juntos. Era algo muito residual e nada muito expressivo. E então, o que faríamos com os migrantes de outras nacionalidades que chegavam na mesma rota?
Nossa resposta foi: entra todo mundo. E ao mesmo tempo disparamos uma processo de cooperação regional com os outros países de trânsito para coordenar ações. Começamos a conceder os vistos ainda no Haiti, no Equador, no Peru para evitar que eles se submetessem ao esquema de exploração dos coiotes. E para que já entrassem por via aérea diretamente nos grandes centros urbanos e não necessariamente no Acre. Começamos a instalar em São Paulo e outras cidades central de referência para o acolhimento dos migrantes com apoio das Cáritas e outras organizações sociais e os poderes locais.
Alguns congoleses e senegaleses — muçulmanos — passaram a ser empregados nos frigoríficos que exportam para países muçulmanos, com abate halal. Veja como essa migração, que poderia ter sido considerada uma concorrência para o trabalhar nacional, na realidade agregou valor ao país para o crescimento da exportação, ajudou o Brasil a realizar os grandes eventos trabalhando na construção civil, ajudou o Brasil a recepcionar todo aquele grande fluxo de turismo e ajudou um importante setor na exportação brasileira de carne, ajudou a diversificar a culinária com novos restaurantes de comida internacional, migrantes se tornaram professores em escolas de idiomas, as artes foram diversificadas — isso tudo para dar apenas alguns exemplos.
Naquele momento, mobilizamos também recursos fazendo convênios com os estados da federação, repassamos dinheiro para esses estados criarem o que a gente chamou de Centros de Referência, Integração e Atendimento aos Migrantes. Ali era o espaço de acolhimento, onde se encaminhava, junto com SESC e SENAI, para cursos de português acelerados e alguns outros cursos profissionalizantes. Os migrantes ficavam, então, nesse centro de acolhimento, com curso de formação, com o serviço de integração somado ao Sistema Nacional de Emprego. As empresas passaram a compartilhar da demanda por mão de obra, então já cadastrávamos essas pessoas e as encaminhávamos para as respectivas cidades, já com emprego e renda garantidos.
Foi toda uma sinergia federativa, não sem dificuldades. No fundo, foi um modelo de resposta integral, que permitiu uma migração mais coerente, apesar da xenofobia
Foi toda uma sinergia federativa, não sem dificuldades. No fundo, foi um modelo de resposta integral, que permitiu uma migração mais coerente, apesar da xenofobia. Enfrentamos muita burocracia e conservadorismos, mas toda essa experiência serviu para potencializar o debate sobre a reforma do Estatuto do Estrangeiro e estabelecer as bases para criar uma nova Lei de Migração. Queríamos mostrar como a nossa lei era restritiva e limitava, olhava para os migrantes como questão de segurança e reserva de mercado e não com enfoque de direitos humanos; como criava obstáculos para outras formas de migração que não fosse a econômica. Estava claro que era necessário criar novos tipos de visto e esses foram os fundamentos para a gente tramitar a nova Lei de Migração e, em seguida, enterrar mais um entulho da ditadura.
Para chegar lá, criamos um grupo de trabalho, de juristas especialistas para preparar uma proposta de nova lei. Eles prepararam uma proposta que tramitou dentro do governo, recebeu os ajustes de todas as áreas e enviada para o Congresso, mais tarde aprovada. Uma nova lei que, entre outras coisas, criou uma categoria de visto que antes inexistente na lei brasileira, a do visto humanitário.
A migração haitiana nos ajudou a aperfeiçoar nossa legislação de migração, que hoje favorece vários outros grupos de outras nacionalidades, e a derrubar o entulho autoritário, remanescente da ditadura, que era o Estatuto de Estrangeiros
A migração haitiana nos ajudou a aperfeiçoar nossa legislação de migração, que hoje favorece vários outros grupos de outras nacionalidades, e a derrubar o entulho autoritário, remanescente da ditadura, que era o Estatuto de Estrangeiros.
Entre 2011 à 2014, nós regularizamos a entrada de um pouco mais de 100 mil pessoas haitianas no Brasil. Mesmo que a primeira resposta brasileira tenha sido não deixar entrar, nós mostramos na prática que podíamos sim internalizar os haitianos, que isso não afetaria nossa economia, nem a oferta de trabalho. O Brasil tinha condições de fazer isso. Ainda assim, não mudou em quase nada nossos índices de população migratória. E nas estatísticas de violência, a ocorrência de situações criminais com participação dos migrantes haitianos era inexistente.
Ainda em 2014, culminando a tudo isso, realizamos a Primeira Conferência Nacional sobre migração e refúgio [COMIGRAR]. Para que a própria comunidade dos migrantes pela primeiro vez na história participasse na formulação das políticas públicas migratórias, para que tivéssemos uma política nacional de migração, com escuta dos próprios migrantes.
Tivemos inclusive a presença do Alto Representante das Nações Unidas para Refugiados, António Guterres, hoje secretário geral da ONU. Ele fez um discurso lindo, relatando que pela primeira vez os migrantes estavam sendo chamados para formular política pública de migração. Ainda assim, essa conferência não foi fácil de acontecer, porque teve resistência a oficializar a conferência, porque algumas pessoas não queriam que o resultado automaticamente se tornasse um plano vinculado à administração pública.
Hoje a legislação brasileira é apropriada e está de acordo com o potencial de acolhimento que o país tem?
Acredito que em relação à legislação, sim. Comparando a outros países, realmente é uma das legislações mais atuais. Agora a política migratória, não. Nós não temos uma política migratória clara compatível com o potencial do nosso país. Queremos ser recebidos e bem tratados lá fora, então precisamos fazer o mesmo aqui. Do Brasil como país receptor de migrantes, solidário, no qual podemos estabelecer sim metas de recepção, metas de acolhimento de processo migratória mais elevadas. Nós temos condição, nós podemos, nós temos essa obrigação mundial. O mundo em ebulição e as pessoas precisam dos lugares com estabilidade para viver, literalmente.
Desde a ditadura, o Brasil era um país de emigração. Somente no governo Dilma, em 2012 aconteceu essa virada nesses índices. Pela primeira vez a gente teve mais imigrantes do que emigrantes. Com essa história, nós devíamos ser muito mais sensíveis ao que significa a necessidade de pessoas de outras nações virem para cá. Falta mais ousadia para termos uma política migratória mais inclusiva, mais aberta e que nos pudesse colocar em padrões mais contributivos em termos de proporções de migração estrangeira no país. Isso só faria bem em termos de cultivar valores de diversidade, tolerância e multiculturalidade na sociedade. O Brasil pode ser mais proativo como um lugar de proteção e solidariedade para quem precisa. E temos condição de fazer isso.
Paulo Abrão | BRASIL |
Professor, doutor em Direito e diretor-executivo do WBO (Washington Brasil Office). Foi Secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) de 2016 a 2020, Diretor do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul de 2015 a 2016 e Secretário Nacional de Justiça do Brasil de 2011 a 2014, quando presidiu o Conselho Nacional para Refugiados.