literatura, poesia e distanciamento social

periferias 5 | saúde pública, ambiental e democrática

ilustração: Juliana Barbosa

Da cidade perdida na Terra das Mágoas às Ruas do Inferno de Eldorado (Ou, Franco)

Rémy Ngamije

| Namíbia |

agosto de 2020

traduzido por João Calixto

Sei que o Franco ainda tá na merda porque ele ainda se refere a sua ex como sua namorada  quando está animado. É uma coisa que sai, como um peido cheiroso, ranhoso, e não importa o quanto ele prenda depois, já é tarde demais. As coisas nunca são as mesmas depois que alguém escuta o seu peido.

Às vezes, é melhor quando ele fica divagando sobre como ela era legal e como ele deveria ter feito diferente. Significa que o nêgo tá focando no problema. Claro, é um lamento, mas pelo menos ele se concentra no objeto da sua dor. Quando ele fica em silêncio eu fico preocupado, que é quando um nêgo pode fazer alguma coisa que o coloque na página três do jornal. Alguns amigos acham que ele tá bem já que ele aparece nas festas, mas eu sei que ele tá passando por um perrengue. Um veterano conhece um veterano. A maneira que ele perde o brilho no meio das conversas de bar significa que eu preciso levá-lo imediatamente pra casa. É no silêncio, quando seus olhos escurecem, quando ele está lento nas respostas. Aí é quando meu nêgo tá lutando pelo seu leme, com a possibilidade de ser esmagado pela tempestade, e então acorda no litoral da Cidade Perdida na Terra das Mágoas – demônios, demência, desespero, e todo o resto.

Ele ainda tá chateado por causa dela. Tá em tudo que faz. O modo como erra um simples passe na quadra mostra que o nêgo tá pensando na Carmen estando nas arquibancadas, vendo o rosto dela onde não tem. Quando o nosso time perde ele suspira e se arrasta até a lateral, esperando pra ver quem vai ser o próximo. Esse é o mesmo Franco que varava entre os caras, praticamente intocável no jogo, desmontando tornozelos, deslizando na defesa, pulando por todos os cantos da quadra. Agora ele é um risco. Ele poderia ir pra um jogo do Cavaliers e se sentir em casa.

Nos primeiros três meses toda a galera estava atenta para prevenir um suicídio. Eu, Lindo, Rinzlo e Cicero – os Cuidadores. A gente fazia turnos indo pra casa dele pra garantir que ele tinha comido e limpado a bunda. A gente ligava pro seu trabalho pra garantir que ele tinha aparecido. Nos finais de semana a gente o levava pra academia, pra pista de kart quando estava aberta, pra barpreciragem fazer um churrasco, pros mirantes, altos o bastante a ponto da quantidade de postes de luz na cidade de Windhoek parecerem no mínimo impressionante. A gente até foi pras festas de salsa que rolam todo mês na Avenida da Independência. A gente fez coisas que a gente nunca faria por nós mesmos, na esperança de que aquilo levantaria um pouco o seu espírito. Que o confortasse a companhia, ou alguma merda dessa. Nada parecia funcionar. Seis meses depois o coração do nêgo ainda tava cambaleando por aí, desorientado pelo amor perdido. Eu quase desejei que a Carmen tivesse tido a decência de acabar logo com ele pra valer quando ela finalmente decidiu ir embora.

Mas o dia de hoje me deu esperanças.

Franco participou de uma corrida de vinte quilômetros. Não pude acreditar quando me ligou para dizer que estava na largada. Carmen vinha tentando correr com ele a Maratona Two Oceans na Cidade do Cabo há anos. A resposta do Franco era sempre, 

— Do que que a gente tá correndo?

Então hoje, um pouco depois das maluquices da manhã eu atravessei a cidade dirigindo pra ver meu parceiro se arrastar pela linha de chegada. Ele parecia estar desmoronando o tempo todo, corpo brilhando que nem o meme da garrafa d'água, peito soando como se ele tivesse inspirando um pacote de lâminas de barbear. Mas ele foi até o final. Não existe combustível como uma mágoa de alta octanagem pra levar um nêgo a fazer o impossível. Eu bati nas suas costas. Atrás dele, guardas de trânsito começavam a tirar os marcadores da rota da corrida.

— Parabéns, Franco! Esse é o meu parceiro.

— Valeu, nêgo.

— Que loucura. Você nem treina.

— Eu só senti vontade de fazer. Ele me olhou de lado, e então desviou o olhar.  — Senti como se fosse algo que eu tivesse que fazer, sacô?

— Não, irmão, saquei não. Se eu correr três quilômetros é melhor ter um trem pra me trazer de volta pra casa.

— A gente tinha dito que ia fazer uma coisa dessas juntos.

— Quem é a gente?

— Eu e a C----

Bom, meu nêgo precisava de um momento pra se acalmar. Nós dois fingimos que era o seu corpo compensando a falta de oxigênio. Fui buscar um pouco de água pra ele.

Naquela tarde, ele saiu e fez um novo corte de cabelo. Nada básico, ele foi e arrumou um navalhado degradê dos lados que só os barbeiros da África Central e Ocidental podem te arranjar, aqueles na cidade perto dos pontos de táxi da Ellerine, onde seus alto-falantes berram o Wizkid e o Patoranking na calçada. Talvez o nêgo estivesse se recuperando. Não existe um tempo limite para a recuperação. Alguns caras demoram mais que outros. Alguns nunca melhoram, alguns controlam a merda e ficam perambulando vida afora como alcoólatras funcionais, com o coração dolorido, azedos pra caralho. Mas ainda assim aparecem no trabalho, ainda namoram, até casam, têm crianças. Eu acho que se existe um armário, um cara sempre vai achar espaço pra outro esqueleto.

Eu esperava que a reinvenção fosse ser intensa com o Franco quando ele fez o degradê. O próximo passo nisso tudo seria ele trocando seu guarda-roupa, deixando de lado seu jeans folgado por algo mais apertado e na moda. Tênis novos, roupas novas, colônia nova, um novo andar, uma nova xoxota vezes oito — esses são os doze passos de um nêgo.

Como que eu sei disso?

Eu sou o Sábio do Caminho dos Seis Homens.

Lindo, Rinzlo, Cicero, Franco e eu atravessamos o primeiro caminho juntos. Foi chamado de idiotice. Na época do ensino médio tudo que fizemos foi brigar, na quadra de basquete, no campo de futebol, no estacionamento do shopping. Nós éramos garotos do tipo garotos-que-seriam-garotos, todos de Windhoek-O Pior, ávidos por representar nosso bairro como vimos as crianças norte-americanas fazendo. A gente não tinha a 21st e Lewis ou nomes maneiros de rua assim. Só ruas com nome de cientistas e compositores mortos. Por isso a gente tentava fazer um nome antes que tivéssemos que ir pra casa fazer nosso dever de química.

Quando crescemos eram outros os caminhos: cólera, luto, cobiça, solidão, e redenção. Eu andei por todos eles.

Uma vez, quando estava preso no caminho do luto, deixei minha namorada dormindo na cama e fui pra sala de fininho ligar pro Franco. Eu disse a ele que eu só queria conversar. Ele disse: — Claro, irmão. A gente pode falar.

Eu falei um pouco da minha mãe. Sobre como quando ela se foi eu meu dei conta que Deus, no melhor dos casos, era um gerente mediano e, no pior deles, simplesmente cruel. E como senti que a decepcionava com as pequenas coisas que fazia ou deixava de fazer. Minha voz brecou e eu fiquei com o telefone longe da boca para que ele não me escutasse chorando na mão. Quando eu coloquei o telefone de volta na minha orelha ele falou:  — Tá tudo certo, nêgo. Se alguém vai conseguir passar por isso esse alguém é você.

Eu consegui. Só me custou um pouco de terapia e os caralho.

Olhando pro Franco com seu novo corte de cabelo, seu olhar de garoto bonito que se basta, o biquinho do seu lábio e seu silêncio pensativo que deixa as garotas loucas, eu pensei em falar pra ele sobre terapia. Mas decidi não fazer. Se teve uma outra coisa que eu aprendi é que os caras não se enfrentam, eles se distribuem. Todo cara tem que percorrer seu próprio caminho.

Aquele era eu naquela época.

Esse é o Franco agora.

A gente apertou as mãos e bateu os ombros.

— Que foda esse corte, Franco — eu disse. (A loja de elogios já vinha trabalhando por seis meses sem parar .)

— Senti que era a hora.

Sem dúvida já era a hora.

E então fomos todos comer pizza na Debonair’s e um outro amigo nosso, o imbecil, Lineker, aquele que nunca sabia quando calar a boca, disse que a fofoca tava rolando e que o assunto pelos becos era que a garota do Franco tava namorando uma outra pessoa. Eu e os outros Cuidadores fizemos uma careta e olhamos pro Lineker na esperança que o Deus Belial labaredasse com cócegas as bolas do nêgo por toda a eternidade. Lineker nunca se propôs a fazer a porra de um turno como Cuidador, e aqui ele tava fazendo um irmão recair. Franco congelou na hora, olhos nadando. Ele foi correndo pro banheiro. Eu pedi um drinque Havaiano para ele.

— Lin, você é burro pra caralho cara, Rinzlo sussurrou.

— O que?  Lineker encolheu os ombros. — Eu achei que isso fosse ajudar o cara a sair dessa. Tipo, ela também saiu.

— As coisas não funcionam desse jeito, Lin, eu disse. Belisquei a parte de cima do meu nariz daquele modo universal que os caras Sábios fazem — com o dedo mindinho pra fora — pra deixar os outros caras saberem que você tá cansado da merda deles. — Só não fala mais porra nenhuma quando ele voltar.

— Vocês sabiam?

— Claro que a gente sabia, Lin. Cicero balançou a cabeça. Ele foi o que descobriu da troca da Carmen. Ele tinha postado no grupo e disse que a gente precisava ficar pronto pro Alerta Vermelho. — Mas a gente não precisava deixar o moleque saber. Porra, nêgo.”

— Informação é o pior inimigo de um cara. Rinzlo inclinou distraidamente contra o balcão. — É ruim pra moral em qualquer lugar.

Quando Franco voltou pro salão, os cílios longos do meu brother pareciam as pernas de uma aranha depois da chuva. Ele conseguiu endireitar seus ombros, mas precisou de um apoio no tronco. O falso aço na sua voz apertou minhas narinas com pena, como se eu tivesse assistindo O Gigante de Ferro voar para encontrar o inevitável mais uma vez.

— Quem é? Franco tremeu enquanto perguntava.

Os outros Cuidadores encontraram o diabo nos detalhes do cardápio.

— Ô Franco, eu não acho que isso vai ajudar, nêgo. Tentei desviá-lo do assunto. Os caras tem essa fascinação obscena pela verdade, especialmente quando vai machucar.

— Quem é? ele se virou para o Lineker.

— Bronwyn.

Eu prometi que nunca mais sairia com o Lineker, apesar de eu estar me perguntando a mesma coisa.

É, a gente sabia que a Carmen tinha um novo nêgo, mas a gente não sabia quem era. Eu tava me coçando pra saber o nome dele. Os abutres nunca resistem a uma carcaça. Mas também, foda-se o Lineker.

— Franco, me desculpe nêgo. Eu pus um braço nos seus ombros. Cicero e Lindo tentaram lançar uma discussão acalorada sobre coberturas de bolo, bacon versus presunto. Franco não se moveu. Ele tava ali performando um haraquiri emocional.

— Por quanto tempo? Ele perguntou.

— Talvez três semanas —  disse Lineker — ignorando os olhares mortíferos que lançávamos contra ele.

Ele se encolheu.

— Talvez mais. Eu não sei. Ouvi disso hoje.

A cara do Franco parecia uma imagem de satélite da África de noite. As luzes eram poucas e distantes entre os espaços do seu ser. O resto estava preenchido de escuridão.

Meu nêgo tava de volta ao vazio.

Os outros Curadores e Lineker engoliram suas pizzas e se retiraram do ringue, pagando suas contas, desaparecendo como um gênio depois do terceiro pedido.

E me deixaram sozinho com o Franco.

Em sua casa ele estava etereamente calmo. Eu me arrependi de não ter feito uma prova de masculinidade. Realisticamente, eu pensei, o quanto de dano uma espátula poderia fazer?  Poderia ele se engasgar por engolir uma borracha inteira?

Ele foi a cozinha e pegou uma cerveja pra ele. Eu fervi água pra um chá. Fiz chá preto, sem açúcar, sem leite — um caminho novo pra mim. Lentamente ele dava goles na cerveja. Eu assoprava o meu chá e tentava manter a conversa leve falando o quão louca era a recessão, como as pessoas estavam economizando por toda a parte. Eu disse a ele como a Angie estava postando códigos promocionais de calças jeans de cintura alta no Instagram pra fazer um dinheiro extra, como Lindo estava pensando em trabalhar de preparador físico. Eu disse a ele sobre os nebulosos esquemas de investimento de Rinzlo que eram estranhamente organizados como uma pirâmide. Todo mundo tava no corre, pegado com três, quatro, cinco bicos só pra sobreviver. Eu disse que talvez eu tivesse que passar crack pros pais dos meus alunos porque, Deus, eu não sabia como eles lidavam com suas próprias crias. Eu percebi que Franco não tinha dito nada todo esse tempo. Sua testa estava enrugada.

— Bronwyn? Sério?

Assim são os homens. Eles veem um penhasco e anseiam por terminar sua queda nas rochas pontudas lá embaixo.

— Pois é, eu também estou bem surpreso.

Estava e não estava.

Bronwyn é um nêgo que com certeza a gente pode jogar bola junto em algum domingo quando os melhores momentos da NBA fazem nosso sangue pulsar. Ele tá sempre no canto, o último a ser escolhido. Até agora quando eu evoco as melhores jogadas do Bronwyn eu não consigo ver um drible ou um fadeaway que tenha dado certo. Até debaixo do aro com ninguém o cercando o nêgo conseguia estragar uma bandeja. Eu olhei pro Franco do outro lado. Eu podia dizer que tudo que ele estava fazendo era imaginar o Bronwyn com a Carmen.

No topo como Número Um das Coisas que um Nêgo Não Gostaria de Pensar Sobre está a sua garota com outro cara. Nunca são os pensamentos sexuais que o levam ao Triângulo das Bermudas do sofrimento. São as mil e uma pequenas coisas que eles costumavam fazer juntos ou as coisas que ele nunca fez com ela que vem à mente imediatamente. Tipo o dia que a gripe a fez  ficar toda encatarrada e tudo que ela queria era que ele levasse alguma uma comida pra ela, mas o nêgo mentiu e disse que o trabalho tava sufocando ele e por isso ele não podia? Algum outro nêgo vai cuidar dela de verdade. Aquele dia que o amigo idiota dela precisava de uma ajuda pra mudar de casa mas o nêgo tava muito ocupado assistindo John Wick pela décima oitava vez? É, alguém vai dar um salto triplo por essa oportunidade.

Quando a minha namorada foi embora, tudo que eu pensava era em um outro nêgo se enrolando na cama com ela, segurando sua mão debaixo dos lençóis como eu costumava fazer. Ela me chamava de Colher de Chá. Eu falava pra ela que era um nome idiota. E quando ela se foi, eu queria que aquela palavra fosse apagada do dicionário. Só poderia haver um Colher de Chá e esse era eu.

— Porra, sinto muito, Franco.

— Não é sua culpa, nêgo.

— É, mas ainda é uma merda, bro.

Eu estou certo, e ele também.

É uma merda. Não é a minha culpa mas, com certeza, é do Franco.

A Carmen pegou o Franco traindo-a com a prima, e apesar de eu não ter conseguido pegar a história toda, eu estou certo que tinha outras garotas. Mas, porra, a prima dela. Esse é o tipo de frieza de merda dos caras que fazem com que as mulheres de Windhoek se amarguem por anos. E os caras do Inferno de Eldorado são uns lixos. É onde o Franco mora agora. As mulheres estariam melhores encontrando homens de bairros estáveis, padronizados, como Avis, Klein ou Eros. Mas o trópico pegajoso, úmido e cafajeste de onde chovem lágrimas e insegurança o tempo todo? Elas têm que deixá-los na merda sozinhos.

Franco, meu brother, foi pego. Ele mentiu. E então a Carmen ligou pra prima do quarto ao lado e o cara teve que improvisar nas desculpas pra amortecer bem rápido.

Shrrrr! Shrrrr!

Ela o deixou. Foi a coisa certa a fazer.

Mas, Deus, eu nunca vi alguém se desculpar como o Franco. Ele foi até a casa dela, de peito aberto, oferecendo qualquer coisa que ela pudesse botar as mãos. Ele foi até o trabalho dela e a envergonhou, chorando como um filho da puta. Ele foi até a igreja dela. Ele cantou mais alto que a tia mais comprometida do coral, fora do tom. Mas meu nêgo cantou. Ele inclusive apareceu na casa da mãe dela, tentando se desculpar, mas a mãe não tava muito afim. Ela disse ao Franco que aquilo era entre ele e a sua filha. E então ela fez um negócio de gângster: ela quebrou os Sete Pactos da Maternidade e chamou a filha pra varanda, disse aos dois que eles precisavam se entender como adultos e que não entrariam de volta na casa sem que resolvessem a bagunça deles.

A Carmen tinha me ligado pra ir buscar o Franco antes dela escutar a mãe enfiar um passe duplo, sangue-de-galinha-e-lagartixa, um feitiço de amarração poderoso no seu cu. 

— Calma aí — ela disse de repente — Daqui a pouquinho eu te ligo.

Ela não ligou. Eu tava preocupado.

Dirigi até lá pra buscar meu parceiro.

Mas quando eu cheguei lá a guerra tinha acabado. Lá estavam eles de mãos dadas na varanda como se não fossem o hino de uma juventude condenada.

O Franco nunca me contou o que ele disse pra ela, mas deve ter sido a própria Palavra da Criação porque a Carmen o perdoou.

Isso foi uma das coisas que os missionários acertaram quando eles chegaram. Eles conseguiram carimbar um perdão automático na alma de qualquer nêgo. Perdão e esquecimento. Esse era o plano do jogo. Primeiro dê Jesus e o Poder Sagrado do Perdão e depois coloque o Medo da Maldição Eterna neles. E então tome a terra. E tenha certeza que o gene do perdão seja passado do pai pobre pro filho indigente, da mãe despossuída pra filha depressiva, para que ao longo de trezentos anos seus filhos não possam reivindicar a merda que lhes pertence.

O perdão corre profundo nas garotas ao sul do Trópico de Capricórnio. Elas não têm opções nas suas cidades empoeiradas pra caralho e desertas. O posto de gasolina serve como shopping, como restaurante que funciona o dia todo, como centro comunitário, tudo em uma coisa só. Não muito longe tem uma igreja onde eles pregam sobre dar a outra face. Um tédio temperando cérebros remexidos pela brasa, vendo a mãe servir com uma concha porções generosas de perdão da panela do casamento fracassado, com o coroa junto, e qualquer garota vai crescer pronta pra desculpar qualquer violação contra ela.

A Carmen veio de uma dessas cidades de latitude desconhecida onde o estupro era recreativo e o vício uma vocação, um desses lugares com nomes terminando em -fontein ou -kraal ou -dorp. Ela sabia os vários nomes da ovelha. Ela podia abrir uma garrafa de cerveja só olhando pra ela. Uma garota bem-criada sempre iria conceder aquela anistia Desmond Tutu pro garoto bonitinho da cidade.

Ela nem fez ele passar por aquele tipo de purgatório público que as garotas brancas fazem um nêgo passar, fazendo com que ele saiba que ele fez merda, convidando-o pra jantar com toda a família, o que também garante que ele saiba que fez merda. Tem um jeito dissimulado que faz o nêgo saber que a avó da sua namorada o detesta. É assim que você sabe que as garotas brancas são sérias quando namoram um homem negro, elas o aceitam de volta. Quando uma mina branca desiste você sabe que ela tava apenas passando por uma fase porque namorar caras negros é um estilo de vida.

Nem uma semana depois da Carmen ter salvado ele do Lago do Enxofre e da eterna bicada no fígado o Franco já tava de volta na cola dela, e, porque é de um cara que a gente tá falando, estava na cola da prima dela.

Homens, gente. Homens.

Na segunda vez não ia mais rolar pra Carmen. É por isso que o meu brother tem estado triste por tanto tempo. Aquela parada era pra ser automática. É assim que é a Oração do Senhor:  — Assim como nós perdoamos aqueles que nos tem ofendido!

Dentro da lógica dele, o Franco ainda tinha pelo menos dez cupons de perdão sobrando.

Ela escolheu sua saúde mental. E, aparentemente, ela escolheu Bronwyn.

Pois é, ela foi com um nêgo que era do círculo social dele, mas isso é apenas parte daquele jogo mais do mesmo. Você vai terminar com uma garota e então a sua prima vai levar ela pra um casamento. Os caras vão trocar de barbeiro e ter a decência comum de encontrar alguém do outro lado da cidade, mas se eles terminam com uma garota eles vão começar a dar em cima da melhor amiga dela no dia seguinte.

É o Karma sendo o que ele é, Franco deveria saber melhor disso.

A gente fez a nossa parte pra ajudar o nêgo a se recuperar. Passamos a ele algumas companhias que poderiam tê-lo ajudado a cuidar da saúde. Cicero o apresentou pra uma amiga que disse não estar buscando nada sério. Lindo tinha uma amiga tímida que sempre teve uma queda pelo Franco. Eu liguei pra aquela mulher que sempre teve algo por mim mas que as coisas nunca andaram muito pra gente. No dia do nosso “encontro” o Rinzlo apareceu com o Franco e eu dissimuladamente jogava ela pra ele pra ver se a gente colocava logo um ponto final naquilo.

Eu disse a elas para não se apegarem. Eu disse pra elas que o meu brother tava passando por um término. Não importa qual o acordo, não importa a extensão das cláusulas contratuais, não importa o quão na merda o nêgo esteja, as mulheres de Windhoek vão tirar seus super-bonders e suas lentes de aumento e tentar recompor o nêgo. Todos os cavalos e homens do rei nem se comparam às mulheres da Nam’, a  Namíbia.

É na real estúpida a maneira com que as mulheres acham que namorar um nêgo recém-saído de um relacionamento pode terminar bem. Talvez elas pensem que seja como deitar no lugar quentinho de alguém em uma cama fria — metade do trabalho já está feito. Isso foi o que a Angie disse: — Pelo menos você sabe que ele tem sentimentos.

Caras que acabaram de terminar deveriam ser tratados como Chernobyl. Depois que o pra sempre tenha expirado, vai ser ok se estabelecer lá de novo. Mas, porra, o Franco tava uivando na lua cheia com aquele sofrimento sem rumo e as mulheres achando isso fofo.

O Franco poderia pelo menos ter deixado alguma das mulheres levarem o bagulho dele pra lixeira, ter certeza que a dor tá ali contida. Mas, não, ele não tava interessado. Ele só queria ficar na cama com as cortinas fechadas, deixando a sua barba que não fechava ficar cada dia mais um trapo enquanto eu lidava com a raiva de todas as mulheres que me culpavam por seu sofrimento.

Eu fiz a minha parte pelo Franco. Eu dei conselhos, encorajei, acalmei e até tentei passar a culpa do que rolou pra sua ex.

Sem dúvida a culpa não era minha.

Mas com certeza era do Franco.

— Você acha que ela tá séria com o Bronwyn?

— Eu não sei Franco. Não sei dizer.

O Bronwyn não era um nêgo ruim, de verdade. Ele era uma merda no basquete, não podia nem pela sua vida dizer alguma coisa engraçada dentro ou fora da quadra, mas ele tava tranquilo. Eu nunca ouvi ele xingar ou falar mal de alguém. Eu nunca ouvi o nome dele na rua. Ele não era um principiante, mas talvez fosse isso que a Carmen tivesse precisando. Até porque, se você quer namorar uma Estrela você precisa lidar com o final de semana de uma Estrela.

O Franco tava cabisbaixo no sofá. Eu sentei no pufe e fiquei folheando o jornal do dia na sua mesa de café.

— Eu fui tão escroto assim?

Em momentos como esse um nêgo Sábio tem que ser um lanterninha pra aqueles perdidos na sua própria e traiçoeira escuridão.

— Franco, eu disse, você é meu amigo, nêgo. — Ele relaxou. — Mas você foi o mais escroto.

— Vai se foder, porra!

Eu fiquei tranquilo. — O compasso da sua raiva tá com o norte errado, disse a ele.

— Foda-se você e sua merda de sábio, irmão. Ninguém precisa do seu palavreado.

— Você precisa mais do que nunca, Franco. Mas, escuta, eu não sou Morpheus e você não é O Escolhido. Eu não posso codificar uma Matrix em volta de você pra sempre. Você precisa consertar o rolê ou virar a página, e eu só posso ajudar você em alguma dessas duas coisas.

Ele suspirou.

— Você passou por isso, ele disse depois de um tempo.

— O que?

— Seu término.

— Passei? 

A gente se olhou por um tempão.

— Quer saber de uma coisa?

— O que, Franco?

— Lá no fundo eu sinto que ela ainda gosta de mim.

Eu olhei pra merda da página de esportes.

— Você não acha? Ele olhava pra mim.

— Eu sei lá, Franco. Eu-Eu acho que você tinha que focar em você por um tempo, sabe? Ela tá com o Bronwyn agora. Isso é um sinal de alguma coisa. Eu não sei do que exatamente, mas é um sinal.

— Eu sei, mas isso vai passar.

Franco se inclinou pra frente, cotovelos nos joelhos, queixo descansando nos punhos em formato de bola.

— Ela vai voltar.

E então meu amigo Franco começou a chorar.

Ai, Franco.


publicado por American Chordata, Junho de 2019.

Rémy Ngamije | Namibia |

Rémy Ngamije é um escritor e fotógrafo da Namíbia, nascido em Ruanda. Seu romance de estreia “The Eternal Audience Of One” sairá pela Scout Press(S&S). Ele é co-fundador e editor-chefe da Doek!, a primeira revista de literatura da Namíbia. Seu trabalho já apareceu em Litro Magazine, AFREADA, The Johannesburg Review of Books, Brainwavez, The Amistad, The Kalahari Review, American Chordata, Doek!, Azure, Sultan's Seal, Santa Ana River Review, Columbia Journal, New Contrast, Necessary Fiction, Silver Pinion e Lolwe. Foi pré-selecionado para o prêmio AKO Caine de Escrita Africana em 2020. Ele também foi selecionado para o Prêmio Afritondo Short Story 2020. Em 2019 ele foi pré-selecionado por Melhor Ficção Original pela revista Stack. Mais da sua escrita pode ser lida em:
remythequill.com

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