desaprisionar o cárcere
Periferias comemora cinco anos e sete edições publicadas
dezembro de 2022
Pequeno passarinho tanto a explorar
E resolve pousar e repousar
Sobre grades vive a cantar
Kelly Rhey
O poema acima foi escrito por uma mulher em privação de liberdade para uma oficina de escrita criativa na Penitenciária Feminina de Foz do Iguaçu. Kelly contou na oficina que o poema foi motivado pela surpresa ao ver que um pássaro, que poderia estar do lado de fora, insistia em entrar na prisão. O texto é construído em torno da incógnita do que o pássaro faz ali, apesar da possibilidade que teria de escolher outro lugar. Talvez, uma forma sugestiva de ler o poema seja supor que o pássaro teria seus motivos para estar ali, que não está por ingenuidade. E se o pássaro fez o que para ele seria a melhor escolha? Qual alternativa ele teria do lado de fora?
No caso específico do horizonte referencial da poeta, a unidade penitenciária feminina da cidade, sabemos que há algumas décadas o passarinho encontraria uma vigorosa mata atlântica, substituída agora por um descampado seco, terra arrasada, onde se elevam quatro edifícios-prisões. Podemos imaginar que o passarinho vai ao presídio mesmo sem ter sido preso por policial algum, porque o complexo prisional não deixou melhores alternativas: talvez o presídio seja para ele a única opção para se alimentar e interagir com outros seres. Nessa chave interpretativa, o poema aponta para algo que abolicionistas penais têm repetidamente afirmado: o presídio não afeta só a vida das pessoas em privação de liberdade e de suas famílias; ao contrário, afeta a todos, ainda que de formas muito diferentes, sendo uma instituição extremamente seletiva.
Angela Davis escreveu em Estarão as prisões obsoletas? que a instituição prisional “nos livra da responsabilidade de nos envolver seriamente com os problemas de nossa sociedade, especialmente com aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo global”. Ou seja, a prisão não só serviria para deter e controlar certos corpos, mas para deter ou evitar mudanças sociais de fundo. É por isso que um projeto de mudança social radical passa necessariamente pelo abolicionismo penal. Nesse mesmo sentido, Fred Moten e Stefano Harney escreveram que o objetivo do abolicionismo não é “a abolição das prisões, mas a abolição de uma sociedade que poderia ter prisões, que poderia ter escravidão, que poderia ter salários (...), não a abolição como a eliminação de qualquer coisa, mas a abolição como a fundação de uma nova sociedade”.
Periferias 7, Desaprisionar o cárcere, segue sendo publicada em versões traduzidas para o Português, Inglês, Espanhol e Francês, assim como temos feito desde a primeira edição, O paradigma da potência, publicada em 2017. Foi esta edição, cara pessoa leitora, que abriu os caminhos para que a Periferias se tornasse também uma editora, com sede na Favela da Maré, Rio de Janeiro, e com vinte livros publicados até 2023.
Os projetos editoriais da Periferias, na revista e em seus livros, fomentam tradições, literaturas, filosofias, poesia, sabedorias e práticas, imagens e utopias das Periferias Globais, com foco nas pessoas e suas intersecções. Disso resultam as questões que articulamos em nossas produções: raça, gênero e sexualidade, etnia, territorialidade, educação pública, segurança pública, o enfrentamento a guerra às drogas, encarceramento em massa, assim como as questões cigana, da migração e do refúgio, entre outras.
Periferias 7 vai além da denúncia da lógica racista e perversa que alimenta o sistema prisional, e busca apresentar caminhos alternativos às bases violentas e autoritárias de sistemas carcerários que se alimentam da violência do Estado contra a população, especialmente as periféricas.
Como editores convidados, Periferias 7 contou com Cristiane Checchia e Mario René Rodríguez Torres, professores da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e coordenadores do Direito à Poesia, projeto de extensão que desenvolve rodas de leitura e escrita criativa em prisões de Foz do Iguaçu.
Periferias 7 publica pessoas e coletivos de onze países. Relatam e analisam a profundidade dos problemas trazidos à sociedade pelo encarceramento massivo e seletivo e trabalham em distintas frentes por alternativas, seja no sentido de propor formas concretas e políticas de desencarceramento, seja no sentido de vislumbrar uma nova sociedade em que as prisões não façam mais sentido.
São atores/as que trabalham na direção oposta à que historicamente se instalou com a instituição prisional — e cujo trabalho torna visível e audível o que a prisão quer ocultar e silenciar. São pessoas que atuam na busca por restabelecer os vínculos sociais que o cárcere desfaz, fazendo fluir o que ele detém: os corpos, os sentidos, a vida. "Trabalhamos para transformar dor em movimento e movimento em liberdade", afirma o coletivo feminista chileno Pajarx entre Púas — em um enunciado que poderia ser o mote desta edição.
Sabemos que não é casual o vínculo da prisão com a reprodução de desigualdades sociais, de gênero, raça e classe. Entrevistamos a intelectual Juliana Borges, que com todo o acúmulo e contribuição de sua militância anti-prisional, tem sido fundamental para a difusão e compreensão da questão carcerária no Brasil, enlaçada iniludivelmente ao passado escravista e à estrutura racista do país.
Kenarik Boujikian, juíza e desembargadora aposentada, ativista dos direitos humanos e uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia (AJD) compartilha sua leitura crítica sobre o sistema judiciário brasileiro — distante da missão que lhe foi confiada pela Constituição de 1988 — de ser um garantidor dos direitos de toda a população. Desencarcerar em níveis expressivos, expõe Boujikian, pode ser alcançado pela simples observância de alguns princípios básicos da justiça com foco em sua dimensão social.
A série de massacres ocorridos em presídios do Equador nos últimos anos são abordados em entrevista com Andrea Aguirre e Elizabeth Pino, do Coletivo Mujeres de Frente, que oferecem uma explicação da situação e apresentam algumas das "ações feministas antipenitenciárias" que o coletivo a que pertencem vem desenvolvendo há 18 anos dentro e fora das prisões equatorianas.
No Brasil, a Agenda Nacional pelo Desencarceramento se constitui como um programa popular que propõe dez diretrizes concretas para redução da população prisional do país. Criada em 2013 por movimentos e organizações sociais que enfrentam o Estado Penal, a Agenda tem promovido, nos últimos anos, a formação de frentes estatais, incluindo a Frente pelo Desencarceramento do Paraná. Entrevistamos três de seus integrantes — um membro da pastoral carcerária, uma familiar de uma pessoa privada de liberdade, e uma egressa do sistema, hoje jornalista — que compartilham suas experiências no sistema prisional.
Dados estatísticos e reflexões sobre as representações correntes dos jovens negros no Brasil demonstram como meninos negros continuam sendo empurrados para a “zona do não ser”, conforme argumenta o geógrafo Osmar Paulino, tendo como ponto de proposição o projeto HONEPO — Homens Negros na Política —, promovido pelo Instituto Maria e João Aleixo.
É evidente a seletividade penal e o racismo no Brasil: em primeira pessoa, Amabilio Gomes Filho, filho de migrantes nordestinos, cria da Nova Holanda, — uma das 16 favelas que compõem o conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro —, tece sua narrativa sobre muros e grades invisíveis que conduzem para o cárcere, mesmo após a saída das prisões.
Entrelaçamentos das prisões contemporâneas ao passado colonial na América Latina são abordados por Dirceu Franco Ferreira e Samuel Tracol, que partem do contexto da pandemia e da forte tensão social evidenciada então nas prisões em diferentes países, para pensar o cárcere em uma história de longa duração na América Latina: dos primórdios da Modernidade e da colonização penal ibérica, passando pela produção carcerária do território até o presente e aos desafios para se pensar um mundo sem prisões.
Marcas do colonialismo penal, inscritas em nosso continente, são visíveis na ilha de Saint-Joseph, no litoral da Guiana Francesa. Glória Alhinho desenvolve um ensaio em que imagens se enlaçam a partir de uma visita às ruínas de uma antiga prisão onde padeceram e morreram pessoas destinadas pelo império francês. Letra, imagem, raízes e vegetação se entranham nos restos das construções e promovem uma reflexão sobre o tempo e a história, a memória humana e a natureza.
Em Trocando pauladas por asas, Murilo Gaulês trata da dor e das sequelas permanentes que produz a violência contra as corpas que pertencem a esta comunidade, mas também compartilha as respostas corajosas e criativas que a Cia dxs Terroristas propõe, ao defender a liberdade de ir e vir das pessoas LGBTIA+ a partir do horizonte do “abolicionismo penal como estratégia de luta por dignidade e bem viver comum no contexto urbano”.
Situações de violência empurram integrantes da comunidade LGBTIA+ para o cárcere onde encontram mais violência. As ações do coletivo Corpos na Prisão, Mentes em Ação, da Colômbia, atuam a partir do cuidado mútuo e do autocuidado pela defesa da comunidade LGBTIA+ à violência punitivista em presídios do país, onde até poucas décadas atrás a homossexualidade era considerada crime.
O sistema judicial não trata as pessoas travestis como “pessoas que podem, mas sim como quem deve ter cometido os crimes de que foram acusadas”. Victor Siqueira Serra analisa a criminalização de travestis em Da janela do gabinete não se vê a rua? O estudo de cem processos que envolveram esta população o faz questionar a idoneidade de promotores, juízes e desembargadores em decisões sobre o destino de pessoas marginalizadas que habitam espaços muito distantes dos privilegiados gabinetes.
Um dos laços que o presídio desfaz com consequências mais nefastas e dolorosas é aquele que vincula mães com filhos pequenos. Pájarx entre Púas aborda a situação de vulnerabilidade que enfrentam as mães que dão à luz e cuidam de seus bebês dentro do cárcere no Chile. Elas compartilham das ações de resistência e reparação que vem desenvolvendo no presídio feminino de Valparaíso a partir das artes. Uma dessas ações, o projeto Nido, propôs às mães encarceradas que escrevessem contos infantis para suas filhas e filhos. Dois desses contos são publicados na edição, assim como áudios gravados por mulheres privadas de liberdade podem ser acessados pelo código QR, figurando como uma entre tantas ações que Pájarx entre Púas desenvolve.
Desde a prisão feminina de Atlacholoaya, no estado de Morelos, localizado no centro-sul do México, o coletivo Hermanas en la Sombra, realiza oficinas de escrita identitária feminista, que respondem a duas constatações: a primeira, de que “é fundamental reeducar a sociedade para fazer frente à estigmatização e criminalização das pessoas privadas de liberdade, sobretudo das mulheres”; a segunda, de que é necessário “trabalhar com elas para desenvolver ferramentas que lhes permitam construir autonomia e comunidade”. A escrita feminista identitária, que trabalha pela visibilidade das mulheres aprisionadas, possibilita o fortalecimento da autoestima e a construção de vínculos comuns. A história da Feiticeiras de Jade, grupo de mulheres que ganhou a liberdade durante a pandemia e recebeu formação de Hermanas en la Sombra para atuar como facilitadoras da escrita feminista identitária com outras mulheres é compartilhada, apresentando o que aprenderam e colocaram em prática pela primeira vez no centro de recuperação para adictos de Morelos.
A experiência de escrita criativa em presídios reverbera em La Plata, Argentina, em oficina literária com homens privados de liberdade realizada pelo escritor Carlos Ríos. Pautada pela escrita de entradas de um dicionário, o exercício levantou entre os participantes uma série de questionamentos sobre a rigidez (aparente) da língua, sobre a objetividade dos dicionários convencionais e sobre as autoridades linguísticas. Ao escrever seus próprios verbetes, os participantes se viram como sujeitos capazes de intervir na língua, abrindo-a para novos sentidos a partir de sua própria experiência.
Experiências literárias e artísticas em prisões como as mencionadas têm um lugar fundamental no esforço por criar novas formas de se relacionar consigo e com os outros, e por produzir outras compreensões de justiça, distintas das concepções punitivistas.
Contra um realismo que aprisiona a nossa imaginação e nos impede de pensar em mudanças sociais de fundo, precisamos especular ficcionalmente a partir das pequenas alternativas que já se manifestam no nosso dia a dia, como sugerem algumas das editoras e autoras norte-americanas na em As ficções e futuros da Justiça Transformativa. Uma delas, Walidah Imarisha publica o conto Rememoração.
Arte na era do encarceramento em massa é um trecho traduzido do livro Making Time: art in the age of mass incarceration, de Nicole R. Fleetwood. A autora aborda o fazer artístico dentro das prisões dos Estados Unidos e discute como essa produção tensiona o mundo da arte contemporânea. O texto mostra a complexidade de relações em torno da “arte prisional”, feita por pessoas encarceradas, mas que envolve dinâmicas de mercado das artes plásticas e o controle institucional sobre essa produção. Nicole R. Fleetwood faz uma discussão conceitual sobre arte a partir, principalmente, dos artistas norte-americanos Ronnie Goodman, James “Yaya” Hough, Todd (Hyung-Rae) Tardelli e Muhammad al Ansi.
Práticas restaurativas são base tanto em prisões para civis quanto para presos do Estado Islâmico no sistema prisional gerido pela Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria, contam Abir Khaled e o Centro de Informações de Rojava (RIC).
A possibilidade de o teatro ser espaço de colaboração, respeito, compartilhamento e engajamento pode ser um caminho de reinvenção dos indivíduos em situação prisional. A professora de teatro da Universidade de Michigan, Ashley Lucas, em artigo apresentado pelo também professor e diretor de teatro Vicente Concílio, nos conta sobre sua experiência em solo sul africano, quando entrou em contato com aspectos específicos da questão prisional em Joanesburgo.
O escritor palestino Ghassan Kanafani, ícone histórico da resistência palestina, tem sua primeira biografia publicada em hebraico, escrita pelo jornalista Denny Rubinstein, como nos conta Hagai El-Ad, diretor da organização israelense B'TSelem. Em um momento em que aumentam as incertezas políticas para os israelenses, segue sem fim a estrutura de apartheid que aprisiona pessoas palestinas nos territórios ocupados da Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Há caminhos possíveis de alianças entre o povo palestino e pessoas e movimentos da sociedade civil israelense que se indignam com as práticas diárias de violação dos direitos humanos promovidas pelo Estado e por supremacistas israelenses. Alianças assim podem fortalecer a luta pela defesa da dignidade da vida dos palestinos, assim como da luta pela identidade cultural, religiosa e literária da histórica resistência palestina.
Em memória a Bira Carvalho (1959 – 2021), publicamos o ensaio fotográfico realizado por ele e Davi Marcos no Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), Rio de Janeiro, como parte do projeto "Direito à saúde no sistema socioeducativo", de parceria entre o Instituto Maria e João Aleixo e as universidades britânicas de Stirling, Strathclyde e Dundee.
Começo, meio e recomeço
A partir de 2020, o Instituto Maria e João Aleixo foi convidado a integrar a rede internacional de pesquisa MIDEQ — Desenvolvimento e Igualdade através da Migração —, que reúne instituições de pesquisa de 12 países do Sul global e se dedica estudar o fenômeno migratório entre os países do Sul de modo a subsidiar a elaboração de políticas públicas que garantam os direitos fundamentais da população migrante. No caso do Brasil, temos como foco o estudo e a articulação de ações com a população imigrante haitiana do país. Acesso a direitos nas migrações Sul-Sul será o tema de Periferias 9, com publicação prevista para setembro de 2023.
Periferias 8, edição especial Litafrika. Encontros artísticos será publicada em junho de 2023, em parceria com Zukiswa Warner, Stiftung Litar e Museu Strauhof.
Agradecimentos
Periferias é uma realização do Instituto Maria e João Aleixo e da Fundação Tide Setubal, que agradecem às pessoas que publicam conosco nesta edição, e às instituições parceiras: MIDEQ — Centro de Migração, Desigualdade e Desenvolvimento do Sul-Sul, Instituto Unibanco, Fundação Heinrich Böll, Observatório de Favelas e Imagens do Povo, Afrolit Sans Frontieres, e Revista Sur — Conectas. Periferias agradece, em especial, a João Calixto, pela valiosa contribuição de articulação com autores/as e ilustradores que compõem esta edição.
Que a Periferias, cara leitora, caro leitor, alimente seu senso de justiça, seu sentimento de indignação contra as lógicas conservadoras, e enriqueça sua imaginação com novas possibilidades de pensar e viver radicalmente a democracia.