Juliana Borges
Por uma democracia da abolição que conteste hierarquias e fortaleça processos comunitários
por Mario René Rodríguez Torres e Cristiane Checchia
| Brasil |
julho de 2022
Sobre a invisibilidade que a questão prisional adquire na sociedade brasileira: por que é tão difícil superar uma visão desumanizadora das pessoas presas, e tão fácil naturalizar seu sofrimento?
Em geral, acreditamos e vendemos uma ideia de que a sociedade brasileira é pacífica, em que todos os grupos vivem em harmonia. Essa é uma ideia que vem sendo questionada há algumas décadas por importantes pensadores brasileiros e brasileiras como Abdias do Nascimento e Florestan Fernandes, bem como notórias feministas negras, sobre o mito da democracia racial. Há outra formulação que gosto muito, da filósofa Marilena Chauí, que aponta a violência como mito fundacional da sociedade brasileira. Veja, essa ideia chamada Brasil surge de invasões e violências brutais contra povos indígenas e, posteriormente, pelo sequestro de pessoas africanas para serem mão de obra escravizada no país.
O que quero dizer com isso é que a violência é naturalizada em nossas relações, seja em execução macro, de forma institucional, seja nas microagressões cotidianas. E, se um dia, a figura desumanizada foi a do escravizado, com as transformações do racismo —que permanece vigente e organizando as desigualdades sociais —, a principal figura desumanizada hoje é a da pessoa em situação prisional.
A despeito de, na letra, o sistema prisional ter uma função ressocializadora, o senso comum, os costumes e as dinâmicas sociais cotidianas executam uma política de vingança, ainda atravessada pela correção que, em verdade, percebe aqueles indivíduos como "incorrigíveis". É nessa perspectiva que se baseia, se difunde e se reproduz que pessoas presas precisariam sofrer.
A despeito de, na letra, o sistema prisional ter uma função ressocializadora, o senso comum, os costumes e as dinâmicas sociais cotidianas executam uma política de vingança
A pensadora Carla Akotirene, em seu livro Ó paí, prezada!1Editora Pólen, 2020, em que aborda a situação prisional de mulheres em Salvador, nos chama atenção para essa ideia de sofrimento como raiz do cárcere ao nos demonstrar algo simples: a etimologia de "penitenciário", relacionada a penitência, a um lugar de expiação.
Todas essas questões se articulam ideologicamente para que a sociedade como um todo acredite que a prisão não é sobre nós todos e que, portanto, os indesejáveis não merecem os direitos que todos nós gozamos. Assim, perpetua-se uma estrutura e dinâmica de naturalização da violência e do sofrimento em relação a pessoas em situação prisional.
Como você analisa o aprisionamento das mulheres no Brasil? Por que o ritmo de encarceramento feminino tem aumentado tanto nos últimos anos? Quais são os efeitos sociais disso?
Temos visto um aumento vertiginoso do encarceramento feminino no país. Em sua maioria, as mulheres em situação prisional são mães, arrimos de família e não terminaram o ensino médio. Em diálogo com as formulações da filósofa Angela Davis, percebo que as prisões são espelhos das precariedades em nossa sociedade. Não se trata de um projeto fracassado. Como aparatos de controle e extermínio, as sociedades, em geral, lidam com as prisões como "os depósitos dos detritos do capitalismo". Ou seja, tudo o que for indesejado deve ser incorporado pela dinâmica de controle e violência sobre esses corpos.
Mulheres estão cada vez mais à frente das famílias, mas isso não vem acompanhado de mais políticas de emprego decente para elas. Em geral, quando falamos de produção de emprego e renda, nos referimos a postos altamente precarizados, ainda em áreas de cuidados e de trabalhos reprodutivos, repetitivos e alienantes. Se em qualquer cenário de crise, as primeiras afetadas são as mulheres e elas são cada vez mais responsáveis pelo sustento de seus familiares, como acreditamos que essas mulheres garantirão esse sustento?
A economia e o mercado das drogas têm uma dinâmica de funcionamento muito semelhante a de outros mercados, quando o debate é a desigualdade de gênero. Mulheres estão, em geral, em postos do varejo, como trabalhadoras da base e, portanto, em posições e situações mais precárias e vulneráveis.
Estamos falando de mais desestruturação de lares negros e periféricos e na manutenção de um ciclo de violência e exclusão sociorracial
A consequência disso é que, com um incremento de recursos e políticas de guerra às drogas, essas mulheres, que estão na linha de frente não como chefes, mas como base da exploração desse tipo de trabalho, serão as primeiras a sofrer essa violência, seja em maior aprisionamento, seja na perda de seus companheiros, filhos e familiares. Os efeitos sociais disso são imensos: famílias que perdem seu arrimo e meio de sustento, mulheres separadas de seus filhos, e que enfrentam, inclusive, maiores penalidades por crimes correlatos ao de homens, pelo peso do patriarcado nas decisões. Estamos falando, portanto, de mais desestruturação de lares negros e periféricos e na manutenção de um ciclo de violência e exclusão sociorracial.
Você fez o prefácio de Capitalismo Carcerário, livro de Jackie Wang, com lançamento pela Igrá Kniga. Ao estabelecermos um paralelo com o encarceramento nos Estados Unidos, quais características o distanciam e o aproximam do encarceramento no Brasil? A análise de Jackie pode contribuir para pensarmos nesse paralelo?
Estou muito grata pelo convite para prefaciar o livro de Jackie Wang. Suas formulações sobre o cárcere são fundamentais, justamente porque estão posicionadas em uma leitura em que não é possível pensar o cárcere sem pensar em capitalismo e racismo. Ao falarmos de prisão, estamos falando de uma gestão de grupos sociorraciais, um tipo de gestão fundamental para o funcionamento do capitalismo e extração de mais valia.
Estamos falando de precarização, de uma relação histórica com servidão-escravização e de uma constituição desse aparato para racialização e hierarquização de grupos racializados. Estamos falando, ainda, de gestão de mão de obra precarizada, quando analisamos essa perspectiva pela via de um complexo industrial prisional.
Os paralelos são muitos entre Brasil e Estados Unidos. O primeiro, porque compomos o ranking de países que mais encarceram em números absolutos, sendo Estados Unidos na liderança e nós, logo atrás, na terceira posição. Mas é importante salientar que, mesmo em proporção, o Brasil não está em uma posição confortável quando o tema é população prisional, ocupando a 26ª posição.
Ou seja, estamos falando de uma alta construção social baseada no punitivismo. E esse punitivismo se expressa nessas duas sociedades a partir dos grupos selecionados para a ação penalizante do Estado: negros, indígenas e imigrantes. A guerra às drogas é um outro ponto de conexão. O Brasil, diferente do que podemos imaginar, foi um dos países pioneiros na solicitação da criminalização do uso de substâncias como a maconha em organismos internacionais, sob o argumento e "medo branco" de que o uso da cannabis estaria relacionado a um tipo de vingança de negros em relação à escravização.
Os Estados Unidos são os responsáveis pela estruturação e exportação da chamada "guerra às drogas", em um momento histórico fundamental no país, quando as pautas dos direitos civis e de igualdade e equidade social e racial já estavam avançando.
A chamada guerra às drogas, na verdade, tem como pano de fundo ideológico o controle e criminalização de determinadas culturas e grupos étnico-raciais. Tanto é verdade que a crise de opioides enfrentada hoje, nos Estados Unidos, não tem como resposta uma política dura e policial, mas é considerada como problema de saúde pública. Assim como lá, a questão do consumo problemático de substâncias como o crack aqui não é vista como pauta da saúde, mas policial. E se lançarmos um olhar demográfico sobre os usuários majoritários de opioides e de crack, fica evidente porque caminhos diferentes são escolhidos para o que, no fundo, se trata de um debate sobre o uso de substâncias controladas ou não e de forma abusiva por pessoas.
Por fim, mas não menos importante, uma outra discussão ainda sem muitos paralelos, mas que demanda nossa atenção, é a legalização da cannabis. Nos Estados Unidos, por ser um debate que acontece de forma descentralizada, a partir dos estados, existem muitas legislações. Ocorre que vemos uma organização dos grupos dominantes e do capital financeiro em disputa sobre os modelos de legalização.Uma legalização sem reparação não deve nos interessar ou estaremos defendendo a manutenção da concentração de riqueza nas mãos de 1% em detrimento dos 99% afetados pela violência da proibição por tantos anos
Há estados em que pessoas egressas do sistema prisional, que foram presas por tráfico, são proibidas de atuar no mercado; em outros, o modelo econômico para participação no mercado canábico torna impossível a integração de grupos que foram afetados historicamente pelo proibicionismo. Uma legalização sem reparação não deve nos interessar ou estaremos defendendo a manutenção da concentração de riqueza nas mãos de 1% em detrimento dos 99% afetados pela violência da proibição por tantos anos.
Eu poderia desenvolver bastante aqui os paralelos possíveis entre Brasil e Estados Unidos quando o tema é encarceramento, mas deixarei o convite para que leiam o prefácio do livro e que o leiam também.
Sabemos que ações pela melhoria de condições de encarceramento são paliativas e incapazes de resolver a questão prisional no curto prazo. Ainda assim, temos exemplos de ações que envolvem pessoas presas num processo de diálogo que pelo menos apontam caminhos possíveis para soluções práticas. Como você vê a potência dos sujeitos no processo de enfrentamento das condições desumanas e degradantes?
Acho fundamental. Eu não sou entusiasta da ideia do quanto pior melhor para explicitar contradições e dinâmicas violentas no cárcere. Antes de tudo, estamos falando de pessoas, de vidas, de familiares, de filhos, de pais, de mães, de sobrinhas, de irmãs. Não podemos, do conforto de nossas casas, ser intransigentes na defesa da abolição das prisões sem pensar que há pessoas sobrevivendo àquele inferno e que tem demandas urgentes. Trata-se de vidas e de condições mínimas de dignidade. Ao mesmo tempo, não acredito no discurso de que para lidarmos com o super encarceramento e super lotação, devemos defender a criação de mais unidades prisionais.
Segundo relatório do próprio Departamento de Política Penitenciária do governo federal, nos últimos 16 anos, tivemos uma intensa expansão de unidades criminais: 4 em cada 10 unidades prisionais do país têm, no máximo, 16 anos. A superlotação será resolvida com desencarceramento, que poderia ser iniciado pelos mais de 25% de pessoas em situação prisional que são presas de modo provisório, ou seja, aguardando julgamento.
A superlotação será resolvida com desencarceramento, que poderia ser iniciado pelos mais de 25% de pessoas em situação prisional que são presas de modo provisório
Há muitas ações que poderiam ser realizadas bastando o respeito e o cumprimento da Lei de Execuções Penais. Como por exemplo, acesso ao trabalho e à educação. Nem 30% das pessoas em situação prisional estudam e/ou trabalham. E esse é um direito. Além disso, muitas mulheres estão presas e são mães de crianças menores de idade e que, portanto, poderiam estar cumprindo suas penas em regime domiciliar.
Outra questão diz respeito às instalações das unidades prisionais que são totalmente insalubres. A despeito de ser uma obrigação do Estado, são os familiares de pessoas em situação prisional que garantem produtos básicos de higiene e alimentação com o mínimo de qualidade. Atendimento médico-hospitalar, atendimento ginecológico, acesso a papel higiênico e absorventes. São questões básicas de dignidade que são cotidiana e reiteradamente negadas às pessoas em situação prisional.
A partir das condições sócio-políticas contemporâneas, é possível se pensar em práticas alternativas à prisão?
Acho que não só é possível como é necessário. Já está provado que não há relação entre aumento de prisão e diminuição da criminalidade. Então, por que continuamos defendendo um aparato como esse? Se o argumento é o de que as prisões são espaços de ressocialização, por que aceitamos condições degradantes e desumanizadoras de pessoas em situação prisional? Por que achamos condizente violentar pessoas e desejar que elas saiam humanizadas de um espaço como aquele, querendo nos abraçar? Quais são as condições sociais que damos às pessoas quando elas saem do cárcere?
A prisão, para além de espaço de violência brutal e desumanização, é um espaço de marginalização definitiva, tendo em vista que o estereótipo que essas pessoas carregam, mesmo após terem cumprido suas penas, é contínuo. Devemos, com urgência, pensar e aplicar cada vez mais espaços alternativos, constituir espaços civis de mediação de conflitos, garantir direitos sociais básicos e de dignidade.A prisão, para além de espaço de violência brutal e desumanização, é um espaço de marginalização definitiva, tendo em vista que o estereótipo que essas pessoas carregam, mesmo após terem cumprido suas penas, é contínuo
A sociedade sempre será conflituosa, porque estamos falando de diversos interesses, desejos, perspectivas, histórias, formatos de existência e de pensar. Contudo, cabe a nós pensar em soluções e mediações que sejam reparativas e restauradoras do vínculo e da dinâmica de convívio social.
De nada adianta marginalizar um indivíduo para que ele construa empatia e senso de comunidade. Ademais, se falamos de uma sociedade igualitária, com justiça social, como continuar defendendo um espaço que serve para controlar e exterminar grupos sociais? Precisamos urgentemente caminhar no sentido de propostas e dinâmicas por uma democracia da abolição, em que hierarquias sejam contestadas, e processos comunitários voltados à cura e a restauração de vínculos, o foco de ação.
Juliana Borges | Brasil |
Escritora, livreira e pesquisadora em Relações Raciais, Política Criminal e Segurança Pública. Conselheira da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e Assessora de Advocacy da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas. Sócia-Proprietária da HG Publicações. Feminista antipunitivista e antiproibicionista. Autora do livro Encarceramento em massa (Coleção Feminismos Plurais, Jandaíra) e Prisões: espelhos de nós (Todavia). Foi secretária adjunta de políticas para as mulheres e assessora especial da Secretaria do Governo Municipal da Prefeitura de São Paulo. Estuda Segurança Pública na FMU.
Cristiane Checchia | Brasil |
Historiadora e professora de Literatura Latino-Americana na UNILA. É coordenadora do projeto Direito à Poesia, que realiza oficinas literárias em prisões de Foz do Iguaçu. www.direitoapoesia.com.br
cristiane.checchia@unila.edu.brMario René Rodríguez Torres | Colômbia |
Professor da área de Letras da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). É coordenador adjunto de Direito à poesia e coordenador do blog "A escrita e o fora", dedicado a escrita literaria produzida em presídios da América Latina.
mario.torres@unila.edu.br