Outrora e Campa
Yara Monteiro
| Angola |
agosto de 2020
Outrora
Lembras?
Quando eras bicho do céu,
bicho da água, bicho da mata, bicho do âmago?
Lembras
a inteireza da nossa casa, do tempo antigo
onde aflorava vida?
Nossos corpos feitos de terra,
nossos gestos livres, coloridos, irrigados
com a saliva do torrão.
Gestos ainda por analisar, estruturar,
matematizar...
Junto dos teus, que são os nossos,
pulsando imersos
fazendo mundo, criando cosmos?
Nós, os do começo.
Lembras?
No meu colo
mamaste
a seiva verde dos meus potes.
Sugaste
o tanto de caudal vivo transmutado nos casulos.
Farejaste
por entre as colinas
pujança dos campos floridos, matas adensadas.
Tateaste
os caminhos divinos abertos pelos rios neste vasto corpo.
Abriste
rachas, feridas,
ávido de mais, sempre mais,
criatura com fome.
Nem adeus te pude fazer.
Hoje chegas e me matas.
Lembras?
Não lembras.
... e fui eu quem te pariu.
Campa
Para se erguer assentou os pés nos meus ombros.
Me deixou com andar largo
agachada
em ocre argiloso.
Desmata mata,
desmata rata.
Desnuda
Desmatada
Desmata, a mata
e a rata.
Os dentes das correntes
na pele
penetram a mata,
a rata.
Desmata.
Desnuda.
Wap! Vap!
Crack! Prac! Prec!
Decepada.
Sem copas,
arbustos selvagens,
rias vivas.
Sem sopros esvoaçantes,
caminhantes e navegantes.
Canto uma canção fúnebre.
Pego no meu corpo
Parto.
Yara Monteiro | Angola |
Nasceu em Angola, na província do Huambo, em 1979. Em 2018, publicou o seu primeiro romance “Essa dama bate bué!” (Guerra e Paz Editores) onde aborda questões de identidade, género, colonialismo e diáspora. É comentadora no programa de rádio “Avenida Marginal” da RDP África e membro da direção do INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal. Já viveu em Luanda, Londres, Copenhaga, Rio de Janeiro e Atenas. Hoje, está baseada no Alentejo, Portugal.