superação de conflitos plurais em contexto de pandemia

periferias 5 | saúde pública, ambiental e democrática

ilustração: Juliana Barbosa

Resistência e inteligência em redes periféricas

Edital colaborativo Matchfunding Enfrente contribui com redes de apoio para o enfrentamento da pandemia em 265 iniciativas de favelas e periferias

Wagner Silva

| Brasil |

agosto de 2020

Há mais de 150 dias temos vivido o isolamento social em razão do novo coronavírus e, nesse cenário devastador, os sentimentos que assolam são o do medo e da incerteza com relação ao que fazer no presente e, consequentemente ,no futuro. Ao longo deste período as decisões desencontradas e a pouca importância dada, principalmente, pelo governo federal tem colocado o país entre um dos que mais tem feito vítimas fatais em números absolutos. O Brasil já contabiliza mais de 100 mil vidas perdidas.

Quando observamos como a pandemia tem afetado as periferias, escancaram-se ainda mais as desigualdades sociais, raciais e territoriais, bem como e a negligência de políticas eficazes, emergenciais, sociais, econômicas e de infraestrutura para a população das periferias. Já é sabido que “o vírus é democrático, mas a doença não” e que a ausência de políticas estruturantes tem contribuído para a letalidade, principalmente, da população negra e periférica. Os territórios periféricos são negros e é crucial que investimentos sejam realizados em pesquisa e produção de dados com recorte de raça e gênero para que seja possível planejar ações estratégicas voltadas para a população desses territórios.

No início da pandemia, com os impactos negativos do novo coronavírus nas periferias, a Coalizão Negra Por Direitos havia conseguido junto ao Ministério da Saúde, a divulgação dos dados com recorte de ração e gênero, via Lei de Acesso a Informação. Porém, diante de uma medida autoritária e antidemocrática do governo federal, o Ministério da Saúde dificultou o acesso a essas informações. Na ocasião, a decisão do Ministério da Saúde em negar a transparência de dados sobre a pandemia ainda tornou mais difícil a compreensão sobre a disseminação do vírus no país e, consequentemente, sobre os reais impactos nas periferias.

A ausência dos dados diminui a capacidade da sociedade civil e governos de planejar estratégias mais adequadas de enfrentamento à pandemia, observando as demandas dos territórios. Pois, além de estar historicamente nas margens, negros e negras, também estamos mais expostos às doenças crônicas como diabetes e pressão alta, fazendo com que essa população esteja ainda mais propensa a ter complicações em razão da Covid-19.

Diante deste contexto, questionamos: como a população negra e periférica pode se isolar socialmente nessas condições? Diante do cenário que se consolidou com o passar dos meses por aqui, um dos principais desafios que surgiram para as periferias foram de ordem econômica. No Brasil há um exército de trabalhadores informais, algo na ordem de 40%. As pessoas não têm reservas financeiras. A realidade é o vivido, é o que está na cena do dia. A solução para a questão financeira tem que ser imediata.

O combate ao novo coronavírus em um país tão desigual como o Brasil não pode ser realizado a partir de estratégias de gabinete ou ideias com critérios duvidosos como os que temos acompanhado desde o início da pandemia. As soluções para o enfrentamento dos problemas gerados ou agravados pelo novo coronavírus precisam ser divulgadas e fortalecidas de várias maneiras e por múltiplos territórios e, as periferias, têm muito a contribuir na proposição de soluções para os territórios periféricos. Para quem vive nas periferias, as medidas de proteção e combate a pandemia promovidas pelo governo têm de estar articuladas com quem vive e conhece o lugar. Cito aqui, a importância da articulação com as redes periféricas, grupos, coletivos, instituições e suas principais lideranças.As soluções para o enfrentamento dos problemas gerados ou agravados pelo novo coronavírus precisam ser divulgadas e fortalecidas de várias maneiras e por múltiplos territórios e, as periferias, têm muito a contribuir na proposição de soluções para os territórios periféricos

As políticas de combate ao novo coronavírus nas periferias deveriam ser uma construção coletiva, entre os governos e as periferias, pensada a partir de cada território, nos mais diferentes contextos.

O monitoramento de dados é de extrema importância para a tomada de decisões, mas monitorar e não propor soluções assertivas e eficazes só contribui para punir quem não pode se isolar socialmente. O desafio é criar soluções e condições reais para as urgências da vida cotidiana, relacionadas ao acesso a água, energia elétrica, alimentos, acesso à internet e a renda básica.

Na contramão das incertezas sobre o futuro, e posto o medo de adoecer ou ficar sem renda, frisamos a importância de como uma poderosa rede de apoio da sociedade civil, mas com destaque para a rede das periferias, tem se articulado e fortalecido iniciativas em todo o país, como forma de combate aos impactos da pandemia. Aliás, é preciso destacar a potência que emerge dos territórios periféricos de todo Brasil. A Fundação Tide Setubal tem acompanhado esse movimento, através de uma nova modalidade de captação de recursos.


Em 2019, a Fundação Tide Setubal e a Benfeitoria lançaram o Matchfunding Enfrente, edital colaborativo que tem como objetivo principal unir pessoas e instituições para cofinanciar projetos que contribuam para o enfrentamento e superação das condições materiais e subjetivas que estigmatizam e segregam periferias urbanas brasileiras e demais áreas urbanas brasileiras em contextos periféricos. O match acontece quando o público apoia o projeto pela plataforma e o Fundo Enfrente triplica a colaboração.

Essa iniciativa também contou com a colaboração oito instituições que colaboraram com a criação do fundo colaborativo e mais dez importantes instituições das periferias brasileiras e outras quatro instituições aliadas na divulgação e mobilização de fazedores das periferias, grupos, coletivos e instituições das periferias para inscreverem no edital as soluções para os seus territórios.

Ao todo, foram inscritas 740 iniciativas de todo país, com exceção do Amapá, das quais foram selecionadas 265 iniciativas com soluções das periferias para sustentabilidade de micro e pequenos empreendimentos, campanhas de conscientização sobre o novo coronavírus, cuidados com a saúde física e mental, distribuição de donativos e recursos.

O Matchfunding Enfrente destinou, ao todo, mais de 7 milhões de reais às periferias do Brasil por meio de doações vindas de todo país e de outros 36 países, mobilizados para 161 iniciativas de distribuição de donativos, Matchfunding Enfrente destinou, ao todo, mais de 7 milhões de reais às periferias do Brasil por meio de doações vindas de todo país e de outros 36 países, mobilizados para 161 iniciativas de distribuição de donativos, 23 campanhas de conscientização sobre o novo coronavírus, 18 iniciativas de cuidado à saúde física e emocional e, por fim, 63 iniciativas de apoio à empreendedores das periferias na manutenção de micro e pequenos empreendimentos 23 campanhas de conscientização sobre o novo coronavírus, 18 iniciativas  de cuidado à saúde física e emocional e, por fim, 63 iniciativas de apoio à empreendedores das periferias na manutenção de micro e pequenos empreendimentos.

Em rede com o Matchfunding Enfrente as periferias têm demonstrado, por meio de diferentes iniciativas, toda a sua potência, criatividade, poder de organização e solidariedade.

Essa potência periférica tem emergido na forma de parcerias com diferentes setores da sociedade para a realização de campanhas de arrecadação e distribuição de donativos, que engloba a doação de alimentos, kits de higiene e limpeza.

O exemplo desta iniciativa tem demonstrado uma capacidade de articulação e logística, até então desconhecida por quem não vive ou desconhece o poder de articulação nas periferias, principalmente em situações de crise, como a que temos sofrido com esta pandemia.

Destaco ações em redes de diferentes territórios que tem levado cestas básicas, marmitas, gás e renda mínima de auxílio a milhares de mulheres, mães solo e famílias nas periferias pelo Brasil.


A Redes da Maré, com o buffet de impacto social Maré de Sabores, localizado no Conjunto de Favelas da Maré, Rio de Janeiro, por meio de sua campanha "Sabores e cuidados: Mulheres na produção de refeições diárias para pessoas em situação de rua na Maré” cuida da realização e distribuição de pelo menos 200 refeições/dia, cerca de 6.000/mês, para pessoas em situação de rua na Maré. A ação gera, ainda, trabalho e renda fixa para 20 mulheres do Buffet Maré de Sabores, que tiveram trabalho interrompido devido à pandemia. O trabalho é realizado na cozinha industrial da Casa das Mulheres da Maré, sede do do projeto Maré de Sabores, que oferece profissionalização à mulheres das 16 favelas da Maré em gastronomia, buscando contribuir, inequivocamente, para autonomia financeira das mulheres da Maré.A Redes da Maré, com o buffet de impacto social Maré de Sabores, localizado no Conjunto de Favelas da Maré, Rio de Janeiro, por meio de sua campanha "Sabores e cuidados: Mulheres na produção de refeições diárias para pessoas em situação de rua na Maré” cuida da realização e distribuição de pelo menos 200 refeições/dia, cerca de 6.000/mês, para pessoas em situação de rua na Maré

Outra ação importante, são as formas e os jeitos criativos de comunicar das periferias. Como não há campanhas de comunicação com a linguagem dos territórios, as periferias têm buscado alternativas para que as informações tenham efeito junto às populações desses territórios. De São Paulo surgiu o podcast “Agência Mural em Quarentena”, produzido por comunicadores ligados a Agência Mural de Jornalismo, e tem sido um porto seguro num mar de informações desencontradas. Também do Conjunto de Favelas da Maré da Maré, no Rio de Janeiro, surge a campanha “Como se proteger do coronavírus?”, produzida pelo Observatório de Favelas. As duas campanhas informam com criatividade sobre a prevenção, o combate às fake news e as medidas do governo relacionadas à pandemia, numa linguagem acessível à população periférica.

Com relação à economia local e a manutenção do micro e pequenos empreendimentos, as periferias têm criado diferentes modelos de apoio a esses empreendedores, que vão do fomento direto (fundo perdido) a modalidades com longo prazo de carência e juros abaixo dos praticados no mercado. Também há um conjunto de iniciativas que visam estruturar os pequenos negócios para migrarem aos chamados market places, ou seja, plataformas compras online, dado que o mundo foi lançado ao uso das novas tecnologias e das ferramentas da internet.

Para além das iniciativas das periferias que foram fortalecidas no Matchfunding Enfrente, temos como exemplo de soluções para o apoio aos empreendedores o “Fundo Éditodos” [uma iniciativa da PretaHub / Agência Solano Trindade / AfroBusiness Brasil (SP) / Vale do Dendê (BA) /Fa.Vela (BH) / Latinidades Afrolatinas (DF)] que leva recursos para empreendedores (formais e informais) negros e negras e faz o dinheiro circular entre eles. Outra iniciativa inovadora para o contexto atual é o “Fundo Volta Por Cima”, [aliança do Banco Pérola com a ANIP – Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia, A Banca, FGV EAESP – Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios e Artemísia], que visa conceder empréstimos a juros zero como uma resposta direta ao desafio urgente dos empreendedores de impacto que atuam nas periferias, frente à crise imposta pela pandemia, para que possam se manter ativos, garantindo empregos e renda.De São Paulo surgiu o podcast “Agência Mural em Quarentena”, produzido por comunicadores ligados a Agência Mural de Jornalismo. Também do Conjunto de Favelas da Maré da Maré, no Rio de Janeiro, surge a campanha “Como se proteger do coronavírus?”, produzida pelo Observatório de Favelas. As duas campanhas informam com criatividade sobre a prevenção, o combate às fake news e as medidas do governo relacionadas à pandemia, numa linguagem acessível à população periférica

Sabemos que é enorme o desafio e que há muito a ser feito. Sabemos que a abertura para construção conjunta de soluções com os governos em muitos momentos é complexa e inexistente. Entretanto, se a conjuntura atual exige ações conjuntas para a criação de políticas efetivas para as periferias. E, mesmo diante das adversidades e da negligência histórica dos governos, e do enorme desafio que as desigualdades sociais, raciais e territoriais impõem as periferias e favelas, assim como em outros momentos estes territórios, seguem articuladas, inovando e abertas à construção coletiva com diferentes setores, apresentando caminhos e soluções através da sua potência, inventividade e inteligência periférica com propósito.

Com o propósito de fomentar, fortalecer e divulgar as soluções e toda essa potência das periferias a Fundação Tide Setubal e a Benfeitoria lançaram um novo edital do Matchfunding Enfrente. Diferente da última chamada direcionada a projetos emergenciais de combate ao novo coronavírus, esta nova convocação está aberta a projetos escaláveis e de longa duração, capazes de solucionar problemas que, a partir da pandemia, surgiram ou se aprofundaram nas periferias. Serão selecionados até 15 projetos que participarão de um programa de 3 anos, onde anualmente realizarão campanha de matchfunding para aplicação do projeto e receberão o acompanhamento de execução da Fundação Tide Setubal.


 

Wagner Silva | Brasil |

Wagner Silva, também conhecido como Guiné, é cria das periferias, da escola e da universidade pública, pai, companheiro e sociólogo. Atualmente, coordena a estratégia de fomento da Fundação Tide Setubal.

@fundacaotide @TideSetubal

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