literatura, poesia e distanciamento social

periferias 5 | saúde pública, ambiental e democrática

foto: Alexander Bee

Sobre o Poeta e o Café

Girma Fantaye

| Etiópia |

agosto de 2020

traduzido por Rane Souza

versão em inglês
traduzida do amárico por

Hewon Semon
“የንጋት ወፍ ጥሪ”

Todos os dias Woubshet acordava de manhãzinha irritado. Os vizinhos à esquerda e à direita de seu quarto alugado eram como despertadores designados por lei para ele. A vizinha da esquerda, mulher recém-convertida do cristianismo ortodoxo para “Pente1Pente – termo em amárico para designar pessoa renascida como evangélica cristã. (N. da T.), sempre orava alto. O vizinho da direita tocava uma música estridente que parecia perfurar o teto e acompanhava a canção, na esperança de escapar dos sons das orações da mulher. A combinação desses sons acorda Woubshet abruptamente de seu sono todas as manhãs. E para completar, a vaca do proprietário também dava sua contribuição, emitindo sons altos por motivos desconhecidos: ou estava protestando contra a ordenha ou declarando a saudade que sentia do bezerro.

No entanto, ele acordou hoje com os sons do caminhão de bombeiros e a frase “Estou indo atrás de você” passando por ali. Ele se sentou na beirada da cama, fazendo força para abrir os olhos. Lançou as pernas de lado ao chão e procurou os chinelos. Não conseguiu encontrá-los. Não conseguia se lembrar do lugar onde os tinha jogado na noite anterior.

Tinha certeza que havia dormido muito. Como pôde ter dormido tanto neste dia? Neste dia tão especial! Um pouco zangado consigo mesmo, despido da cintura para cima, foi até a prateleira em busca do relógio, que marcava nove e meia. Como temia, estava atrasado. Vestiu-se rapidamente e subiu a Avenida África às pressas em direção à Praça Abyot. Sua afobação dava a impressão de que um avestruz furioso, procurando por seus filhotes espalhados, o perseguia.

As longas pernas, sentindo o desgaste do cansaço, não podiam satisfazer o desejo de seu coração de se mover mais rápido, mas seus longos passos bastaram para deixar a rua para trás com rapidez suficiente.  Depois de passar pelo restaurante Flamingo, fez uma breve pausa, olhando para os fiéis vestidos de branco, subindo e descendo as escadas da Igreja de Santo Estêvão2Santo Estêvão é o primeiro mártir da Bíblia. A Igreja de Santo Estêvão está localizada em Addis Abeba, na Praça Meskel. (N. da T.).

Inclinou a cabeça na direção da igreja, fez o sinal da cruz e rogou a Santo Estêvão: “Ajude-me a ter um bom dia, afaste meus inimigos, meu Pai”, e depois seguiu seu caminho. Passou pelo Estádio de Addis Abeba, virou à esquerda e caminhou em direção à Avenida Churchill.

Diminuiu o passo. Percebeu que sua testa estava suando quando chegou ao Ras Hotel da Avenida Churchill. Do bolso esquerdo do casaco largo, tirou um lenço azul e sorriu para si mesmo enquanto limpava suavemente o suor do rosto. Podia sentir que seria um bom dia. O Roha Café se encheria de emoção hoje. Não conseguia se lembrar com clareza da última vez que tinham feito uma noite de poesia no Roha Café. Deve ter sido mais de 10 anos antes. Poetas renomados e estimados, críticos da região, jornalistas à procura de fofocas, atores de teatro que ele via diariamente desfrutando o sol da manhã no Teatro Biherawi viriam. “Todos virão e apresentarão poesia ou zombarão de quem lê seus poemas”, disse a si mesmo.

Quando chegou ao Ras Hotel, começou a andar em um ritmo ainda mais lento. Passou as mãos pela camisa para ver se a gola estava bem colocada sob o suéter que vestia. Tudo no lugar. Olhou para os sapatos. Não estavam limpos. Chamou os meninos listero sentados ao sol do outro lado da via principal. Um listero3Listeros – palavra em amárico para designar engraxates (N. da T) que aparentava estar em meados da adolescência veio correndo em sua direção. Sem tirar os olhos dos sapatos de Woubshet, o listero deixou cair a caixa no chão, ajoelhou-se e começou a limpar os sapatos. Woubshet, com o sapato na caixa do listero, ficou absorto em ideias, pensando na noite que se aproximava e no breve discurso que faria.


Tudo recomeçou na última terça-feira. Um rapaz jovem, magro, de pele escura e cabelos desarrumados chegou ao Roha Café e parou na entrada. Woubshet estava preparando uma xícara de macchiato com café quente. 

— Por que está parado aí? Entre ou se afaste para a esquerda ou direita — ele gritou, apontando para os animados cafés Sheger e Arada.

O jovem ignorou Woubshet. Ficou mais um tempinho na entrada e então gritou:

— Woubshet, o poeta!

Woubshet parou de preparar o macchiato e encarou o garoto com atenção. Ninguém jamais o tinha chamado de “poeta” até aquele dia.

— Você está amaldiçoado. Recomece as noites de poesia. Acha que basta escrever um livro e passar o resto de sua vida ateando fogo à obra? — disse o garoto. Em seguida, foi embora sem esperar por uma resposta.

Woubshet não sabia quem era o garoto ou quem poderia tê-lo enviado. Fechou o café e foi ao Tele Bar tomar uma bebida e passou a noite andando sem rumo, pensando nos bons e velhos dias do Roha Café. Que tempo abençoado tinha sido.

O que fez nos últimos dez anos? Nada! O que fez além de queimar cada uma das cópias do livro que escreveu, fazendo uma fogueira como a Meskel demera4 Meskel Demera: fogueira de Meskel A festa comemorativa da descoberta da Verdadeira Cruz de Cristo, com o nome abreviado na Etiópia como de Meskel ou Maskel, é o nome dado na Etiópia à festividade comemorada no dia 26 de setembro para comemorar a exumação da verdadeira Santa Cruz de Cristo. As celebrações começam com a preparação da Damera, uma fogueira de forma cónica erguida na Praça Meskel, em Addis Abeba. A Damera é formada por uma pilha de troncos rodeados por feixes de galhos que são adornados com flores frescas e ervas da Abissínia que simbolizam o Ano Novo. Centenas de milhares de pessoas de diferentes comunidades vêm para a praça, enquanto os sacerdotes, vestidos com ornamentos coloridos, cantam hinos, recitam orações e executam uma dança rítmica única em frente à fogueira. A cerimônia atinge seu ápice quando o patriarca da Igreja Ortodoxa Tewahedo acende a fogueira. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Meskel, acessado em 25 de julho de 2020) (N. da T.)? Queria bater a cabeça contra uma parede.

Woubshet Mesfin publicou um livro de poesia intitulado O decreto do primeiro pássaro e virou motivo de chacota para críticos e poetas, tanto profissionais quanto amadores. Escreveu sobre um pássaro. Havia um pássaro. Um pássaro que, diferentemente do pássaro de Meskel, não aparecia apenas uma vez por ano após o cheiro da adey abeba5 Adey abeba é uma flor nativa da Etiópia que floresce em setembro, no início do Ano Novo Etíope, que coincide com o dia 11 de setembro do Calendário Gregoriano. Na Etiópia, o amarelo, cor da flor adey adeba, é um símbolo de paz, harmonia e amor. (Fonte: https://www.adeyabeba.org/, acessado em 25 de julho de 2020) (N. da T.). Era sobre um pássaro que, quando o céu ficasse da cor do burro quando foge, perturbaria a paz de Addis Abeba, declarando: Allehu, allehu, eu existo. Um dia, todos os outros pássaros imitaram sua voz e começaram a dizer: Allehu, allehu, e roubaram sua melodia. Aquele pássaro nunca mais foi visto. Nunca mais voltou a Addis Abeba. Ele escreveu: “Para onde foi o pássaro?”. Quando o livro chegou ao público, tornou-se alvo de muito escárnio. Foi acusado de desrespeitar a literatura. Na última terça-feira, fez dez anos desde que ele, assim como Aryos, foi excomungado das artes.

Escreveu seus poemas no momento em que Roha Café era visto como um dos locais mais importantes para a literatura. Foi uma época maravilhosa tanto para o Roha quanto para as artes. Ao menos duas vezes por semana, o Roha abria as portas para poesia acompanhada de música da krar6Krar é uma lira de cinco ou seis cordas em forma de tigela proveniente da Eritreia e Etiópia, é semelhante à kora africana. O instrumento é ajustado para uma escala pentatônica . Uma krar moderna pode ser amplificada, e muito, da mesma forma que uma guitarra elétrica ou um violino. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Krar, acessado em 25 de julho de 2020) (N. da T.) e da washint7 Washint é uma flauta de origem etíope com um orifício de madeira a ser assoprado. Tradicionalmente, músicos amáricos contam histórias orais através de canções acompanhadas pela washint e pela krar. (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Washint, acessado em 25 de julho de 2020) (N. da T.). Além disso, a cada 15 dias, um artista famoso era convidado a conduzir discussões acaloradas.

Na semana em que seu livro foi publicado, os críticos sacaram suas armas e dispararam contra ele. Quando foi abrir o Roha Café, no início da manhã, cinco dias após o lançamento do livro, encontrou a obra jogada na varanda do café. Não esperava receber tanta negatividade. Poetas, críticos, jornalistas que antes enchiam o Roha Café desapareceram por completo.

Fechou o Roha Café e desapareceu da região por duas semanas. A notícia da reclusão de Woubshet se espalhou por toda a cidade. Ele foi para Dire Dawa. Ao voltar, desprezando a poesia, interrompeu todas as atividades artísticas no café. Tirou das paredes os poemas. Então, cortou contato com todos os poetas e críticos e começou a comprar exemplares de seu livro de editores e distribuidores para queimá-los, esperando que a próxima geração sequer soubesse da existência da obra.

Em pouco tempo, o Roha se tornou um café frio, onde apenas café e macchiato eram servidos. O glamour do Roha deteriorou-se ainda mais quando os vizinhos cafés Sheger e Arada foram abertos.

Woubshet queria administrar o Roha Café apenas até que todos os exemplares de seu livro tivessem sido queimados. Tinha publicado novecentos e cinquenta exemplares. Um mês e vinte dias depois de voltar de Dire Dawa, comprou novecentos e trinta cópias de sua obra. Porém, encontrar esses últimos vinte livros levou mais de dez anos. Como não sabia quem os tinha comprado, continuou visitando antigas livrarias. Em vários lugares, ele até costumava esperar o fim do expediente para perguntar: “Alguém tem um livro chamado O decreto do primeiro pássaro? Mas, mesmo assim, até a semana anterior, na terça-feira, tinha comprado e queimado apenas dezesseis livros dos restantes. Ainda faltavam quatro livros. 

Porém, na terça-feira, decidiu abandonar seu esforço de dez anos e organizar um grande evento de poesia. Distribuiu anúncios em espaços públicos. Também enviou descrições do evento aos jornais. Sua única preocupação era com relação ao número de pessoas presentes. Não queria um grupo grande.


Deu um birr8Birr ou, na sua forma aportuguesada, birre (...), oficialmente birr ou birre etíope, é a moeda corrente oficial da Etiópia, cujo código ISO 4217 é ETB. Subdivide-se em centavos (santims). (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Birr_et%C3%ADope, acessado em 25 de julho de 2020) (N. da T.) ao listero e dirigiu-se calmamente ao café, sem esperar pelo troco. Ao observar o número de pessoas do lado de fora do Teatro Biherawi, bebendo chá, café e macchiato, pode-se ter a impressão de que Addis Abeba foi convocada a ir para uma batalha. Um sentimento de inveja tomou conta dele quando percebeu que seu café não estava aberto e que todas essas pessoas estavam sendo servidas apenas nos cafés Arada e Sheger.

Mas, imediatamente, se repreendeu: 

— Ouça, Woubshet Mesfin! Você é um poeta, não um comerciante! Deixa eles para lá.

Colocou a mão no bolso e procurou a chave do café. Primeiro, procurou no bolso esquerdo. Encontrou um lenço azul. Então, esvaziou os outros bolsos. Devia ter esquecido as chaves em casa. Esqueceu as chaves. Aproximou-se dos outros cafés, zangado com seu esquecimento. Parecia que os amantes de café da cidade tinham sido chamados aqui por uma proclamação. O barulho de xícaras e colheres, a inquietação daqueles que bebiam café, as idas e vindas dos garçons faziam com que os cafés se assemelhassem a uma área agitada de mercado. 

Woubshet aproximou-se dos cafés. Viu o Arada Café. Também viu o Sheger Café. Mas não conseguia ver o Roha Café. À medida que se aproximava, sua confusão aumentava. Chegou à varanda, sem vontade de acreditar no que estava vendo. Os assentos estavam ocupados, algumas pessoas estavam bebendo em pé. Todas as cadeiras na varanda estavam ocupadas.

O Roha Café ficava ali.

Mas o Roha Café não estava ali naquele instante.

Ele lutou para compreender o que estava vendo. Tentou se convencer de que o que estava vendo não era verdade e que não devia estar acordado.

O café não estava lá.

Até as onze horas da noite anterior, o Roha Café estava entre os cafés Arada e Sheger. Incapaz de digerir o que estava vendo, ficou cerca de vinte minutos encostado em um dos postes do Teatro Biherawi, movendo os olhos, observando as pessoas que, distraidamente, bebiam café na varanda. Registrou as características de cada cliente.

Leu os nomes dos cafés, afixados na parede externa de suas entradas. Em um deles, dava para ver Arada Café. Sem tirar os olhos da parede, lenta e cuidadosamente fitou a porta do café ao lado. Estava escrito Sheger Café. 

Ende!9Ende – palavra em amárico para expressar surpresa, divertimento. (N. da T.) Isto realmente está acontecendo? — falou para si mesmo. E, em seguida, repetiu, se repreendendo — Você é burro? Isso não pode estar acontecendo. 

Desviou o olhos dos cafés e encarou os edifícios à sua frente. Viu o Addis Café de longe. Tinha razão. Não estava no bairro errado. Fazia 15 anos que ia e vinha daquele lugar. 

Ao abandonar os pensamentos, se perguntou: 

— Para onde foi o Roha Café? — Enquanto batia na testa porque não conseguia ver ou ler o letreiro. — Talvez meus olhos tenham perdido a capacidade de ler — disse ele, enquanto caminhava de onde estava, ao lado do Teatro Biherawi, em direção ao Ras Hotel. Quando chegou à entrada do Ras Hotel, parou. Esfregou os olhos e disse a si mesmo repetidas vezes o que estava vendo: pessoas passando por ele, criaturas indo e vindo nas ruas, não era obra de seus sonhos, mas sim a realidade. Ele se alongou. Bateu na testa suavemente com a palma da mão.

Voltou devagar os quarenta metros que separavam o Ras Hotel do Teatro Biherawi. “O que há de errado comigo?”, ele se perguntou. “Caramba! Meus olhos não conseguem ver direito? Isso significa que a velhice chegou. E se meus olhos não forem o problema?” Ficou preocupado. “Será que comecei a enlouquecer? Estou esquecendo as coisas? Não! Não enlouqueci.” Olhou para as roupas que estava vestindo. Sua aparência parecia boa. Embora eu não pareça estar bem vestido, não me descuidei, pensou e se conformou. Se eu disser que o café desapareceu, eles vão pensar que enlouqueci, ponderou enquanto caminhava devagar de novo. Desejou que levasse uma eternidade até percorrer o curto caminho. Voltou aos cafés enquanto conversava consigo mesmo. Olhou adiante. Mais uma vez, o Roha Café não estava em sua localização. “Como ninguém havia perguntado como um café que estava ali ontem não existe mais hoje?”, perguntou e olhou ao redor para a massa de pessoas preocupadas que tomavam café.

Começou a pensar no que deveria fazer. Deveria gritar: “Roubaram meu café”? Se fizesse isso, seria levado ao Hospital Amanuel, convencidos de que era louco. Como se convenceria daquela situação e o que faria para viver agora? Enquanto se estressava com essas perguntas, dois contadores da Medhin Company entraram no Sheger Café sem cumprimentá-lo. Eles o viram. Até se entreolharam. Fingiram que não o conheciam. Ele ficou um pouco irritado. Ao olhar do Sheger Café para o Arada Café e depois fazer o contrário, esperou que um milagre trouxesse o Roha Café de volta. Pouco tempo depois, duas jovens entraram no Arada Café sem cumprimentá-lo. “O que há de tão errado comigo que as pessoas se recusam a me cumprimentar como um filho de Deus?”, ele disse a si mesmo, pensando em confrontá-los. Mas não se pode questionar os outros por não dizerem oi. Voltou os olhos para onde Roha Café estava até a noite passada.

Engoliu em seco e olhou incrédulo para o Arada Café e depois para o Sheger Café, enquanto se apoiava no poste do Teatro Biherawi. Irritado e confuso, o suor estava começando a rolar pela testa. Pegou o lenço azul para secar o rosto e o colocou de volta no bolso, pouco depois precisou trazê-lo de volta à testa.

A garçonete baixinha do Arada Café veio em sua direção. Tinha prendido os cabelos curtos para trás. O uniforme azul que usava se encaixava perfeitamente ao redor dos quadris, atraindo o olhar de todos os transeuntes. Woubshet gostava do sorriso dela, um lindo sorriso brilhante que fazia valer café da manhã, almoço e jantar por si só. Era uma boa amiga. Uma vez, tentou escrever um poema sobre o sorriso dela, mas nenhum verso lhe viera à mente.

Ela lhe abriu um sorriso reservado e disse, com muito respeito:

— Sinto muito, o senhor está aqui faz um tempo. O que posso trazer para o senhor? 

O sorriso dela, aquele sobre o qual tentara escrever um poema, não estava lá.

Woubshet abaixou a voz e se aproximou dela.

— Você não me conhece?

A garçonete baixinha tentou olhá-lo de maneira humilde e fez que não com a cabeça. 

— Olhe para mim. 

Ela assim o fez.

— Você não me conhece? —insistiu ele.

— Não tenho certeza. Talvez eu tenha me esquecido. Me desculpe. Nosso trabalho nos obriga a conhecer muitas pessoas, não conseguimos nos lembrar de todo mundo — respondeu ela.

— Mas você me conhecia bem.

Ela o olhou novamente, balançou a cabeça e disse:

— O que posso trazer para o senhor?

— Não quero nada.

— Então o senhor não pode ficar aqui. Faça o pedido ou vá para a calçada e fique em pé. Os clientes podem querer o lugar. É política da casa.

Woubshet ficou com raiva.

— Como é? Quem ousa me impedir de ficar na varanda do meu café?  — Ele falou com voz alterada. Era isso que temia. — Eshy10Eshy – é um termo em amárico para denotar aceitação de algo. (N. da T.), me diga, para onde foi o Roha Café?

— Qual Roha Café? — Ela parecia confusa. 

— O meu café! Roha Café! Estava aqui ontem à noite.

Os clientes que estavam sentados na varanda agora direcionaram os ouvidos e começaram a escutar a voz alterada de Woubshet Mesfin. Todos os olhos estavam voltados para ele como espinhos de um porco-espinho. Não tinha certeza porque estavam olhando para ele daquela forma. O café onde trabalhou por tantos anos... quando desaparece de repente, ele não pode perguntar por quê? Não pode perguntar sobre o que é seu por direito, ende?

— Você não se envergonha quando nega a existência de um café do qual entrei e saí durante dez anos? Vamos perguntar ao povo de Adis Abeba, da Praça do México ao Ambassador Hotel, da estação de trem Legehar ao bairro Piassa, onde ficava o Roha Café. Não há motivo para mentir!

A garçonete baixinha deixou Woubshet falando para anotar o pedido de um novo cliente. Woubshet murmurou sozinho:

— Que bizarro! Simplesmente bizarro.

As pessoas olhavam-no fixamente. 

— Meu povo, por que estão olhando para mim? Acham que sou louco ou acham que estou mentindo? Ele é minha testemunha de que estou dizendo a verdade — disse ele, erguendo as mãos para o céu. 

— Que café é esse, meu amigo? — perguntou o jovem alto que não estava muito longe de Woubshet, mexendo o chá de limão com uma colher.

— O meu café, o Roha Café. Estava aqui até às 11 horas da noite passada — respondeu. — Não consigo encontrar meu café agora. Alguém poderia dizer para onde foi o meu café? —  continuou em voz suficientemente alta para que todos ouvissem.

— Talvez você tenha confundido o local? Frequento essa região há dois anos, nunca vi um Roha Café aqui — comentou o homem educadamente, batendo com a colher na borda da xícara de chá.

Woubshet ficou com raiva.

— O que ele está dizendo?!? Estou dizendo que trabalhei no meu café até tarde da noite. Que é isso? Vivo do meu café há anos. Quantos viciados em café eu já servi? Como pode dizer que nunca viu meu café? Como é possível que eu, o proprietário, não seja confiável? Cite um único poeta que não conhece o Roha Café, do Woubshet Mesfin. Quantos dramaturgos se sentaram no Roha e tiveram a inspiração para suas ideias. Aurora em Gondar, onde acha que essa peça foi escrita? Não foi no Roha Café? Ele não estava sentado e bebendo o café quente do Roha? Por que nega? Não há motivo para mentir!

O jovem ouviu Woubshet em silêncio e, sem responder, colocou uma nota no porta-copos e saiu apressado. O barulho ao redor dos dois cafés tinha desaparecido e foi substituído por silêncio e palavras sussurradas. Alguns começaram a rir.

O garçom-chefe, vestido em seu traje branco, do Arada Café aproximou-se de Woubshet. Ele era alto e de pele escura. Tinha uma cicatriz na testa, ou um cavalo tinha pisado nele ou foi vítima de um ataque a faca. O gerente usava um casaco de trabalho curto por cima da camisa branca. Segurou as mãos educadamente nas costas e se aproximou dele. 

Woubshet relaxou quando viu Moges.

— Moges, ajerew. Ere11Ere é uma palavra informal em amárico para expressar incerteza. (N. da T.), me ajude a resolver esse quebra-cabeça. Para onde um café poderia ir? — perguntou ele, abaixando a voz. 

Moges ficou surpreso, pois um homem que nunca tinha visto o chamara de “ajerew”, termo carinhoso entre amigos, e disse:

— Como podemos ajudá-lo, senhor? Está incomodando meus clientes.

— Moges! — exclamou Woubshet, batendo palmas: — Moges! Você também! Moges…

— O senhor me conhece?

— Sou Woubshet Mesfin, de Harar! Ele pergunta se o conheço ?!?

Moges ficou confuso e tentou se lembrar de onde poderia conhecer Woubshet. Não conseguia se lembrar de nada. 

— Você também está agindo como se não me conhecesse?

— Nunca vi o senhor antes.

— Pare de brincar e diga onde está o meu café.

— Qual café?

— O Roha Café?

— Que Roha Café? Conheço todos os Cafés, desde a Praça do México até o bairro Piassa, e não há nenhum café chamado Roha na região.

— Por que precisa ir tão longe? Deus não o julgará por negar que o Roha existiu entre o Arada e o Sheger por muitos anos?

— Se o café ficasse aqui, para onde iria? Não é de vento, sabia?

— Você é o Moges, certo?

— Sou, sim.

— Há dois meses e vinte dias, eu não trouxe uma boneca para sua bebê recém-nascida?

— Sim, eu tenho uma filha recém-nascida, mas de onde o senhor me conhece para ter a intimidade de ir à minha casa com uma boneca de presente para ela?

Woubshet ficou furioso.

— De onde conheço você? De onde conheço você? Você me pergunta? Quantas vezes você veio me pedir dinheiro porque o dia do pagamento não chegaria tão cedo? Quantas vezes dei a você tudo o que tinha?

Moges disse calmamente:

— Senhor, onde disse que o café ficava?

Woubshet olhou para os dois cafés. Os clientes que tomavam café ouviam atentamente a conversa.

— Aqui, é claro — respondeu e apontou para os dois cafés que serviam seus clientes um ao lado do outro. — Entre os dois. Ao lado de Roha ficava o Sheger Café, não era?

Enquanto Moges tentava conter o riso, o dono do Sheger Café notou a comoção e se aproximou dos dois.

Getaw12 Getaw: palavra em amárico que significa senhor, mestre, porém, não é usada de uma maneira sisuda. (N. da T.), você está perturbando a área.

— Onde devo procurar meu café? — gritou Woubshet com raiva.

Million tirou os óculos e examinou Woubshet.

Ato13Ato: palavra em amárico que significa senhor. (N. da T.), Million, não diga que não me conhece também — Woubshet disse. 

— É óbvio que não!

— Como pôde me esquecer, o homem que administrou o Roha Café por tantos anos?

— Qual café?

— Ele me pergunta qual café! Você administra este lugar pretensioso. Não sei se você vendeu khat14 Khat é uma erva estimulante mastigada em muitos locais no “chifre da África” (região norte do continente africano). (N. da T.)? Por que você finge não me conhecer?

O rosto de seus interrogadores era povoado pela confusão. Embora nunca tivessem visto Woubshet antes, sabiam que tinha informações sobre eles. Million esteve envolvido na venda de khat anos antes, mas não o fazia mais. Agora, possuía apenas uma casa em Haya Hulet Mazoria, onde artistas mascavam khat.

— Onde disse que ficava o Roha Café?

— Quantas vezes tenho que dizer? Ficava aqui, entre os dois cafés. Você também me esqueceu da noite para o dia, mas o que você pode fazer quando Ele ordena!

— Quando?

— Até ontem à noite, às 11 horas.

— E para onde foi?

— Como vou saber?

— Bem, não pode ter se levantado e desaparecido — comentou Moges.

Woubshet enfureceu-se. 

— Se ficasse aqui, onde mais estaria? O café não levantaria voo — retrucou Million, virando-se para entrar novamente em seu café. Todos deixaram Woubshet onde estava e retomaram seus afazeres.

Os que bebiam café pousaram os olhos nele. Ele voltou os olhos para o café. Não conseguia entender como todos o esqueceram em um dia e como o Roha Café havia desaparecido.

— Estou sonhando? — falou para si mesmo. Impossível, não estava sonhando. O Roha Café sumiu. Quando olhou para cima, os olhos das pessoas estavam voltados para ele. Alguns tinham pena dele.

— O que estão olhando? Por que estão agindo como se não me conhecessem? — perguntou em voz alta. Ninguém respondeu. — Você, você — disse ele, apontando para um homem baixo e barrigudo que estava reclamando que seu macchiato tinha muito leite. — Você não me conhece? Não era o cliente que só tomava o macchiato do Roha Café?

— Quem, eu? — perguntou o homem.

— Sim, você esqueceu?

— Não arrume confusão, meu amigo. De qual Roha você está falando? Começaram a tratá-lo e o liberaram muito cedo do hospício. Daí veio para cá para nos incomodar.

— Quem você está chamando de louco? — Woubshet levantou a voz. — Você não está tomando lagartin15 Lagartin – medicamento usado no tratamento de transtornos mentais. (N. da T.)? — completou ele. 

O homem ficou chocado.

— Deve ser um espião. Parece que guarda nossos segredos. Agora, pare de me incomodar. 

Ele ficou quieto pensando em como um estranho poderia saber de seu problema com a saúde mental. Continuou mexendo seu macchiato em silêncio.

Moges ouviu o barulho na varanda e saiu. Viu Woubshet brigando com um cliente.

— O senhor está atrapalhando nossos negócios. Vou chamar a polícia. Não pense que a delegacia está longe...

— Que venham mil policiais. Perguntei sobre o meu café — disse ele. — Acha que é o café de outra pessoa, o meu café, meu suor! Sou Woubshet Mesfin de Harar, poeta que não tem medo de ninguém, poeta. Não pense que quero uma parte da fortuna de ninguém.

Ele se aproximou de Moges. 

Moges tentou recuar.

— Não me faça chamar a polícia — repetiu ele. 

— Chame mil policiais, eu sou da terra de Harar. Quem teme a morte? Você fala em polícia, hahahaha... policiais peidorreiros, quem tem medo deles?

Dos que estavam assistindo a Woubshet, alguns continuaram interessados em sua persistência, outros, cansados da repetição, começaram a pagar suas contas e ir embora. Ao fazê-lo, novos bebedores de café ocuparam seus lugares.

Woubshet rapidamente passou por Moges e entrou no banheiro do Arada Café. As pessoas lá dentro não tinham notado o que estava acontecendo do lado de fora, então ignoraram a entrada apressada de Woubshet. Só deram atenção a ele quando Moges o seguiu gritando:

— Saia daqui! 

— Me deixe urinar em paz — disse o outro e trancou o banheiro por dentro. Era possível ouvir Moges e os outros sussurrando do lado de fora da porta.

Woubshet fechou os olhos quando parou diante da pia. Temia se olhar no espelho, mas se aproximou mesmo assim. A quem pediria ajuda se visse outra pessoa no espelho? Abriu a torneira com os olhos ainda fechados. Sentiu a água corrente caindo nas mãos.

Limpou o rosto suado com as mãos molhadas. 

Lentamente, abriu os olhos.

Era ele.

Tudo aquilo estava realmente acontecendo com o Woubshet Mesfin? Ou sua alma estava descansando no corpo de alguém que não conhecia? Ou não acordou do sono? Se lembrou da história do etíope Abemelek, amigo do profeta Ermias, que dormira sessenta e seis anos depois de orar para evitar assistir à destruição de Jerusalém e pensara que, talvez, também tivesse dormido, embora, não por muitos anos, mas muito menos. Temendo que pudesse ter envelhecido, se olhou novamente no espelho. Era o mesmo Woubshet Mesfin. Apertou o rosto entre as mãos. 

Era o Woubshet Mesfin de ontem. A cabeça estava coberta de cabelos grisalhos. A pele da testa formava linhas. Seus olhos pousaram na sobrancelha esquerda. Tinha mais pelos grisalhos que a sobrancelha direita. Colocou os dedos da mão esquerda nas sobrancelhas e as sentiu. Não era dia de se preocupar com as sobrancelhas. O café onde havia trabalhado nos últimos quinze anos havia desaparecido. Pior ainda, observava as pessoas que o conheciam passarem fingindo não o conhecer e sem disposição para falar com ele.

Ouviu Moges do lado de fora:

— Cara, vá embora. Vou chamar a polícia. Você vai se arrepender depois e perguntar por que foi preso.

— Roha Café, para onde foi o Roha Café? — perguntou ao homem no espelho. 


Woubshet lembrou-se de quando deixou sua cidade natal, Harar, e veio a Addis Abeba para trabalhar como contador nos correios e, depois, nos dias gloriosos do Roha Café. Não tinha outros sonhos. Poesia, dia e noite: sonhava em ser poeta. Desejava ser lembrado após a morte como um grande poeta e não como um homem carregando carne que apodreceria com a morte. “... ser ou não ser, eis a questão…”, queria escrever apenas um verso como esse e fluir nele para sempre. Sempre sonhava com o momento em que seu nome seria conhecido mundialmente, quando seus livros seriam material didático nas escolas, quando seus versos seriam repetidos por pessoas de todos os tipos. Sonhava em estar presente, para sempre. Mas, não conseguia se lembrar de uma única vez em que escreveu um verso satisfatório o suficiente para si ou para seus amigos. 

Enviava poemas para todos os concursos de poesia que ouvia falar. Porém, nunca recebia retorno de nenhum deles, nem mesmo a confirmação de recebimento de seus poemas retornou a ele. Contudo, nunca desistiu. Passava os dias pensando em poemas em detrimento de seu trabalho e de sua vida social.

Deixou o emprego nos correios e foi para a casa do irmão, em Dire Dawa, pensando em ter mais tempo para sua poesia. Seu irmão vendia contrabando. Se ganhasse algum dinheiro hoje, perderia outro tanto amanhã. Era assim que vivia.

— E seu emprego? — perguntou a Woubshet quando o viu.

— Pedi as contas.

— Vai vender contrabando comigo. Estou feliz que veio.

— Contrabando?

— Iremos a Artishek pela manhã. Esteja pronto — respondeu ele. 

Woubshet não demonstrava firmeza.

Abo16Abo: palavra informal em amárico para denotar despreocupação. (N. da T.)! Não me encha. Vim morar aqui para poder escrever meus poemas.

— Você não é um mashela tebaqi17Mashela tebaqi: termo em amárico para designar pessoa que cuida de uma fazenda com cultivo de sorgo. (N. da T.), cantando para encontrar pássaros da colheita do sorgo. O que a poesia faz por você?

Mas Woubshet estava decidido. Morou com o irmão por dois anos e terminou o primeiro rascunho de seus poemas. Enquanto estava em Dire Dawa, seu irmão abriu um café chamado Roha, em Addis Abeba. Woubshet se mudou para Addis Abeba para administrar o café do irmão e publicar seu livro. Depois que seu irmão morreu em um acidente de trem, se tornou o dono do Café. O Roha ficou famoso logo depois.


Woubshet abriu a porta do banheiro e saiu.

Ayie18Ayie: uma maneira informal de expressar, em amárico, compaixão por alguém. (N. da T.) Moges, você continua agindo como se não me conhecesse — disse Woubshet, olhando com tristeza para Moges.

— Em nome da Santa Maria, juro, Mariamin! Não conheço o senhor. 

Woubshet saiu do café e parou na varanda. Mas, o Roha Café não estava lá. Onde o café tinha se escondido? Estava além de sua compreensão.

O proprietário do Sheger Café, Million, parado mais distante, disse com ironia:

— Você encontrou seu café? 

Woubshet passou por ele, desafiador, e não lhe deu resposta. Enquanto se afastava dos dois cafés, seu coração ficou cheio de tristeza, e seu espírito carregado de uma confusão inexplicável.

Decidiu procurar pessoas que o conhecessem e explicar sua situação. Nos últimos dez anos, cortou relações com a maioria das pessoas nas artes. Porém, alguns ainda se lembravam dele. Desde que as pessoas falaram sobre sua tentativa de queimar todos os seus livros, elas o conheciam. Poderia encontrar alguém que se compadecesse de sua situação.

Foi até os livreiros atrás do Teatro Biherawi. Tinha um relacionamento muito forte com o dono da Shawl, a antiga livraria. Mais de cinquenta dos seus livros de poesia que queimou foram comprados na Shawl. Encontrou o proprietário, Bekalu, reorganizando os livros. 

Woubshet deu a Bekalu uma calorosa saudação: 

— Bekalu, o grande, você já virou adulto.

Bekalu olhou maravilhado para Woubshet.

—Bom dia –– disse em tom calmo e respeitoso, o tom usado para falar com os idosos.

— Bekalu — repetiu Woubshet.

— Sim — respondeu Bekalu, confuso.

Ere, ouça o que aconteceu comigo — continuou Woubshet, em espírito de camaradagem, sem perceber a confusão de Bekalu. 

— O que aconteceu? — quis saber Bekalu.

Ende! — retrucou Woubshet. — Não diga que você não me conhece?

Bekalu sorriu e disse:

— Sinto muito, talvez eu tenha esquecido de você?

Ficou envergonhado por ter esquecido de um cliente. 

Woubshet tentou manter a calma. Se aproximou do balcão.

— Você talvez tenha o livro de Woubshet Mesfin, O decreto do primeiro pássaro?

Bekalu tentou se lembrar, mas não conseguiu. 

— Lamento. Nunca ouvi falar desse autor ou do livro ele respondeu. 

— Tem certeza? — perguntou Woubshet.

— Em nome do anjo Gebreil, eu juro, Gebrielen! — jurou o homem.

— Você não me conhece? — questionou Woubshet. 

Bekalu olhou para o homem que estava diante dele.

— Você veio dos Estados Unidos? — perguntou ele, duvidando de si mesmo.

— Você nunca me viu? —  disse Woubshet. O jovem livreiro fez que não com a cabeça. — Você me conhecia, Bekalu. Eshi19Eshi - é um termo em amárico para denotar aceitação de algo. (N. da T.). Você também não conhece o Roha Café?

— Onde fica?

— Perto do Teatro Biherawi, onde você tomava café com frequência.

Bekalu negou com a cabeça. 

Woubshet caminhou até outros três livreiros. Estava convencido de que o reconheceriam. Seguiu murmurando para si mesmo. A mesma coisa aconteceu. Não o conheciam. Não encontrou ninguém que o conhecesse ou ao seu Roha Café. Tinha certeza de que era um homem que, até ontem, morava em Addis Abeba, administrava o Roha enquanto tentava escrever versos poéticos em papel branco. Era como se sua existência tivesse sido apagada por decreto. Da noite para o dia, todos que o conheciam se esqueceram dele. Enfiou a mão no bolso e procurou sua identidade. Olhou para o documento. Era uma carteira de identidade com a foto de Woubshet Mesfin, de Harar, o destemido. Era ele. 

Se dirigiu para o Tele Bar, que ficava atrás do College of Commerce, e se sentou em uma cadeira na varanda. Era onde estava antes de voltar para casa na noite anterior. Era cliente da casa havia vários anos. O garçom que conhecia se aproximou dele. Ele também o havia esquecido completamente. Pediu café. Quando o garçom voltou com a bebida, Woubshet pigarreou e disse:

— Com licença, irmão, sabe onde fica o Roha Café?

O garçom fez que não com a cabeça e se afastou. Não conseguia lembrar aonde todos os outros garçons tinham ido.

Saiu do Tele Bar e foi à Praça Tewodros às pressas, em busca do escritório do crítico e advogado Maru. Esperava que Maru se lembrasse dele. Caminhou pela Avenida Churchill, olhando a área, imerso em profunda reflexão. Não conseguia pensar em nenhuma razão possível para que isso tivesse acontecido com ele. Não mudou nada de ontem para hoje. A única coisa que aconteceu foi que tinha sido apagado da memória, tanto da memória dos outros como do que tinha dedicado sua vida. Mas, como pode algo físico, uma cafeteria, desaparecer? Para onde alguém diria que ela poderia ir? Reuniu e queimou sua coleção de poemas para ser esquecido como poeta, mas não inteiramente como ser humano.

Chegou ao escritório do crítico Maru. Era cliente do Roha desde o dia em que foi aberto. A crítica desoladora que escreveu sobre o livro de Woubshet criou uma barreira no relacionamento deles. Porém, enquanto muitos abandonaram o Roha, Maru ainda aparecia de vez em quando e tomava café em silêncio. Chegou ao escritório, que ficava a poucos passos do Liceu Gebre Mariam

Bateu na porta e entrou. A secretária pediu que esperasse. Logo, foi convidado a entrar no escritório de Maru. Maru se levantou e o cumprimentou. Não como se cumprimentasse um amigo querido, apenas como se cumprimentasse um cliente.

— Maru — disse Woubshet.

Abet20Abet: palavra em amárico que significa sim. (N.da T.) — respondeu Maru com sua voz áspera enquanto sorria.

— Por favor, me diga com sinceridade — disse ele.

— O que devo lhe dizer?

— Você não me conhece, certo?

 Maru encarou o rosto de Woubshet. Pensou. Fez que não com a cabeça.

— Lamento. Talvez eu tenha me esquecido do senhor — disse o crítico. — Era escritor? 

— Roha Café. O café perto do Teatro Biherawi, que você frequentou por anos, lembra? — perguntou Woubshet.

— Perto do Teatro Biherawi? Não... Não! Não me lembro de um café com esse nome.

Woubshet não conseguia acreditar no que estava ouvindo.

— Você também não sabe quem sou eu? Não conhece uma coleção de poemas intitulada O decreto do primeiro pássaro?

Maru meneou a cabeça. Apontou para os livros na prateleira atrás de Woubshet.

— Todos os livros sobre os quais já escrevi críticas estão ali. Dê uma olhada. Não conheço seu trabalho. Lamento.

Woubshet levantou-se. Saiu do escritório de Maru e voltou ao Teatro Biherawi.

O Roha Café não estava lá. 

Passou o dia inteiro sem comer, sem café da manhã, sem almoço. 

Para que comer?

O evento da noite de poesia começaria daqui a três horas. Ficou em frente ao Teatro Biherawi e começou a esperar pelas pessoas que teriam ido ao Roha Café para o seu evento. O tempo estava passando.

Faltava uma hora.

Trinta minutos.

Olhou para o outro lado da rua para ver onde o Roha Café ficava até a noite passada. Os clientes do Sheger e Arada iam e vinham. Ninguém se lembrava do Roha. Ele também foi esquecido, como se não tivesse vivido na terra.

Estava na hora. 

Ninguém veio ao Roha. E o Roha Café também não estava no lugar de sempre.

Em desespero, caminhou em direção ao estádio, abandonando o café em que trabalhou nos últimos quinze anos. Continuou procurando por pessoas que conhecia. Embora reconhecesse algumas delas, nenhuma delas o reconheceu. Os cânticos dos fãs de futebol no estádio envolveram o bairro. Começou a caminhar para a Praça Abyot.

Um jovem livreiro carregando uma pilha de livros correu até ele.

— Quase esgotado, quase esgotado —  gritava ele, tentando vender seus livros.

— Escute aqui, você tem um exemplar do livro O decreto do primeiro pássaro

O livreiro começou a rir de Woubshet.

— Hahahhahahahahhaha!

Woubshet não conseguia entender por que ele estava rindo.

— Você tem o livro do grande poeta? — perguntou. — O livro do poeta Woubshet Mesfin ... 

O riso não parou.

— Hahahahahahahahaha!

— O livro do poeta Woubshet Mesfin — repetiu.

Woubshet cobriu os ouvidos com as mãos e correu pela via que levava à Igreja de São Uriel. Não tinha certeza aonde estava indo, mas passou pela igreja, desceu a ladeira e só parou quando chegou à ponte. 

Fixou os olhos no rio que corria lá embaixo, cansado pelo calor do sol do verão. O crepúsculo aproximava-se. Corria lentamente por entre as rochas. 

A escuridão cobriu o riacho estreito.


revisão de tradução
Petê Rissatti

Girma T. Fantaye | Etiópia |

Escritor etíope e ex-jornalista da mídia impressa. Publicou antologias de poesia e um romance em Amárico, sua língua nativa. Seu novo romance Yenigat wof Zema  (ou, livremente traduzido, "Os ritmos de um pássaro principiante") será publicado neste ano de 2020. Vive em Addis Ababa.

girmabe24@gmail.com

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