A experiência anticarcerária trans do coletivo Corpos na Prisão, Mentes em Ação
O cuidado mútuo e o autocuidado são o eixo central de nossa ação
Laura Katalina Zamora | Abay Alejandro Hérnández | Jennifer Suárez | Katalina Ángel | Estefanía Méndez
| Colômbia |
novembro de 2022
traduzido por Mayara Alexandre Costa
Por trás de cada conduta delitiva de alguém da comunidade LGBTI+ tem uma história. Mulheres e homens trans, lésbicas, homens gays, bissexuais, pessoas com gênero fluido, empobrecidas, racializadas temos ocupado massivamente as prisões da Colômbia e do mundo. Quando afirmamos que fomos encerradxs por questionar os mandatos do regime da cis-heterossexualidade obrigatória, as interpelações são muitas. Vocês são inocentes ou culpadxs do que são acusadxs? Os olhares externos muitas vezes estão centrados unicamente na transgressão das leis, enquanto permanece ausente as perguntas sobre o contexto que co-produziu as ações delitivas: em que contexto sócio-político-cultural vivia cada um antes de chegar a ser encarceradx? Que possibilidades de acesso a direitos fundamentais: saúde, educação, habitação tivemos? Afirmamos que existe um vínculo inegável entre a cadeia de violências estruturais que vivemos e as razões pelas quais fomos ou estamos presxs.
Muitas pessoas pensam que nós, pessoas do grupo LGBTI+ que estamos nas prisões, somos seres “antissociais”, que não sabemos nem podemos viver em comunidade. Imaginam que somos pessoas violentas. Entretanto, pouco se fala sobre as violências que sofremos por expressar nossos gêneros e sexualidades livremente. Quando uma pessoa trans, gay, bissexual, lésbica ou queer se expressa, não corresponde com as normas socialmente estabelecidas, por essa razão a sociedade se encarrega de nos excluir. Por isso você não vê pessoas trans ou pessoas da comunidade em certos cargos, sempre estamos em trabalhos pouco visíveis. Permanentemente crescemos na marginalidade, na escuridão, nas sombras, buscando sobreviver com as misérias e sobras que a sociedade nos reservou até hoje. Assim que não somos mais do que o produto de uma sociedade que permanentemente nos empurrou a viver de forma indigna. Historicamente os direitos mais fundamentais nos foram negados.
As pessoas ainda nos veem como escória, como lixo, como se merecêssemos estar na prisão. Aplaudem quando umx de nós está presx. Crescer nas sombras tem sido sinônimo de sermos compreendidxs e apontadxs como corporalidades criminais. Na Colômbia, a homossexualidade e o uso de roupas do sexo contrário, ou seja, vestir roupas culturalmente designadas como femininas, foi penalizado formalmente até 1980. Hoje em dia, mesmo que as leis tenham sido alteradas – graças ao nosso trabalho nos movimentos sociais –, a criminalização continua vigente. Dinâmicas como a expulsão dos espaços familiares e a marginalização em espaços empobrecidos, nas zonas de trabalho sexual e no microtráfico são algumas das manifestações nas quais se materializam estes castigos.
Nós integramos o coletivo Corpos na prisão, mentes em ação. Somos pessoas com gêneros e sexualidades trangressoras da ordem cis-heterossexual. A maioria de nós estivemos ou estamos agora mesmo na prisão. Além disso, integram o coletivo pessoas que nunca estiveram lá. O coletivo nasce na prisão La Picota, na cidade de Bogotá; nasce da raiva e da dor, nasce da necessidade de fazer frente às violências sistemáticas, à força da brutalidade, de abandono e de desprezo que buscam restabelecer as sexualidades e gêneros “corretos” em nossas corpas. Como disse Katalina Ángel, uma de nossas fundadoras:
Estive quatro anos e meio dentro de uma prisão, estando aí me dei conta de todas as violências, de todas as necessidades e de todo o abandono institucional, familiar, social que vivem as pessoas privadas de liberdade, sobretudo quando somos pessoas com identidades de gênero diversas ou orientações sexuais diversas. Corpos na prisão, mentes em ação nasceu então da necessidade, da dor, da raiva, da vontade de resistir frente à injustiça. Creio que todo esse processo — todas essas situações de violência, de dor, toda essa merda que você engole lá dentro — foi o primeiro passo para conseguir instalar um projeto como Corpos na prisão, mentes em ação, num contexto tão violento como são os cárceres.
Katalina Ángel e Natalia Espitia são oficialmente as pessoas que fundaram e batizaram o coletivo. Ele nasceu com o objetivo fundamental de ser uma rede de afeto e de suporte para as pessoas trans, gays e bissexuais reclusas na prisão La Picota. Desde 2013 desenvolvemos ações dentro dessa prisão: ações pedagógicas, artísticas, de denúncia e de incidência política. Temos feito oficinas de formação jurídica e defesa de direitos humanos, publicamos uma cartilha sobre isso. A arte também é uma aliada bastante importante — as oficinas de dança, arte-terapia e teatro acompanham os nossos dias.
Em muitos sentidos, nossa existência tem o objetivo fundamental de defender nossos gêneros e sexualidades no cárcere; defender nosso direito a existir em meio a um contexto muito violento, que de diversas formas quer que nossa existência não seja notada, que ela seja dissimulada ou, pior ainda, que desapareça. Nossas buscas estão orientadas a encontrar uma maneira de frear esses processos de masculinização, feminização e heterossexualização forçadas, que são centrais no que é chamado de “tratamento e disciplina penitenciária”.
Nosso processo também tem sido um caminho de cura através da busca por justiça e transformação. Como disse uma companheira:
Para mim, [Corpos na prisão, mentes em ação] tem sido esse caminho de cura frente a muitas situações que tive que viver dentro da prisão, pois realmente se transformou num alívio muito grande. Não só para mim, que entendi estarem agindo frente a essa violência, mas também para essas outras pessoas que ficaram lá dentro. Creio ser a mostra de como se pode transformar a raiva e a dor em força, e como essa força pode transformar de maneira positiva o entorno.
Num contexto tão violento foi fundamental criar e sustentar essa rede de afeto e suporte. O cuidado mútuo e o autocuidado são o eixo central de nossa ação, porque diante de um cis-tema que quer nos ver mortas, cuidar umas das outras é revolucionário. Diante de um cis-tema que nos diz que nossa existência é indesejável, reconhecer que nossa vida é valiosa é revolucionário. Ante o monstro carcerário, que busca nos isolar e devorar, nos mantermos juntas é revolução. Como disse Laura Katalina:
Qualquer coisa que acontece na vida de uma pessoa é quase impossível de suportar sem uma rede de apoio. O que ocorre é que o objetivo da prisão é isolar as pessoas, castigá-las e romper todos os vínculos e laços que fazem com que elas possam lidar com as situações, não é mesmo? Por isso acredito que é indispensável criar mecanismos para manter essas redes de apoio, nas quais a pessoa sinta que apesar das circunstâncias ela não está sozinha. Então acredito que sim, efetivamente não pode haver resistência sem que haja redes de apoio, sem um grupo de pessoas ao seu redor, mesmo que seja um grupo pequeno, mas que exista esse grupo de pessoas.
Mas na prisão nada é cor de rosa. Aqui aprendemos que o autocuidado também implica cuidar de quem te rodeia, escolher bem pra quem você conta suas dores e esperanças. Se cuidar neste lugar significa ter muita precaução e não dar o chicote pra outra pessoa te bater, não permitir que com a linguagem te maltratem. Na prisão, aprender a levantar a voz, a falar, a se empoderar, a se defender é também fundamental para não permitir que te silenciem, que te submetam. E bem, se cuidar na prisão também implica o que implica fora, ainda que com muitas mais dificuldades. Significa fazer tudo o que está ao seu alcance pra não adoecer e se manter o mais saudável possível: acertar a comida pra comer melhor, se exercitar, nutrir seus pensamentos ainda que seja muito difícil, se formar, não permitir bloqueios à sua capacidade criativa. Se cuidar na prisão também significa se manter vaidosx, enfeitar seu corpo, se embelezar, continuar se sentindo linde, gostar e se sentir bonitx com a imagem que aparece no espelho. Isto pode parecer para muitas pessoas secundário ou superficial, nada mais alheio à realidade.
Talvez, no fundo, o autocuidado ajuda a construir a certeza de que a sua vida importa. A certeza de que a sua vida, sim, é valiosa. Ainda que uma aparente maioria, representada no regime punitivo, insista que não. Como disse uma companheira:
"Nesse momento penso que o mais importante para chegar a um autocuidado e a um cuidado coletivo é se empoderar, empoderar a si mesma, entender o valor da própria vida. Somos pessoas que o tempo todo queremos nos autodestruir e morrer porque é uma vida super frustrante a que leva a maioria das pessoas trans. Por isso, acredito que o importante é se empoderar, entender o valor de nossas vidas. Entender que, se nos unirmos, podemos alcançar tudo o que queremos. Mas penso que ainda estamos dando os primeiros passos. O movimento trans é um movimento muito novo que só agora está nascendo, ainda estamos nesse processo de coletivizar nossos sentimentos e nosso interior para poder conseguir algo muito maior e mais poderoso. É o primeiro passo para chegar ao autocuidado e ao cuidado coletivo. Quando todas entendermos que temos que estar unidas e na mesma sintonia por nossos direitos, nesse momento vamos produzir um espaço de cuidado coletivo.”
Nosso caminho como coletiva nos trouxe a certeza de que a instituição prisional é obsoleta, como disse Angela Davis. A esmagadora maioria de pessoas que estamos nos cárceres somos racializadas, empobrecidas, vítimas da guerra e de uma cadeia de múltiplas expulsões, dentre as quais a prisão é só mais uma peça. Aqueles que lucram com a guerra, o extrativismo e a exploração nunca chegam a conhecer a prisão. Aqueles que se beneficiam da fome, do deslocamento forçado, da morte são imunes ao cárcere.
É por isso que aqueles que aqui nos leem devem também se convencer de que necessitamos construir formas verdadeiras de justiça. A prisão não tem sido, nem será. Como diz Dean Spade, precisamos parar de reivindicar leis que fortaleçam os sistemas punitivos, porque ao fim e ao cabo, não só não são mais do que uma ilusão, mas também legitimam e financiam as redes que nos submetem. Outras justiças, centradas na reparação e no cuidado, são possíveis. Devemos começar a construí-las nos nossos círculos mais próximos. Isto significa muitos desafios, sem dúvida.
Em nossa experiência, em primeiro lugar significou romper o feitiço que nos faz pedir àqueles que nos prejudicam que “apodreçam na prisão”. Acabar com o mito de que as prisões servem para fazer justiça. Encarar, encarar de verdade o que elas são - um mecanismo de prolongação das injustiças sociais, do regime de gênero, colonial e racista. Isto não é fácil. O feitiço está bem enraizado. Mas começar a fazer isso é urgente.
Também significou construir em nossos círculos mais próximos estratégias para enfrentar as injustiças racistas, cisgeneristas, heterosexistas, sexistas das quais não estamos isentas. Acreditamos que os caminhos anti-prisionais passam por reconhecer que necessitamos encarar as múltiplas injustiças que vivemos com processos que nos ajudem a nos curar. Para isto, necessitamos construir redes que nos sustentem e ocupá-las ativamente. Devemos nos convencer de que nossas vidas são valiosas. Treinar nossa voz para nos fazer ouvir, e sermos capazes de transmitir nossas necessidades. Também treinar a escuta e sermos capazes de reconhecer as necessidades de outres. Mas, sobretudo, ter a convicção de que sim, é possível construir respostas coletivas à nossa necessidade de justiça.
Davis, Angela. 2017 [2003]. ¿Son obsoletas las prisiones?. Traducida por Gabriela Adelstein. Córdoba: Bocavulvaria Ediciones.
Preciado, Beatriz. 2008. Testo Yonqui. Madrid: Espasa Libros
Rubin, Gayle. 1989 [1984]. “Reflexionando sobre el sexo. Notas para una teoría radical de la sexualidad”. En Placer y peligro. Explorando la sexualidad femenina, compilado por Carole Vance, 113-190. Madrid: Revolución.
Suárez Bonilla, Jennifer Eileen. 2018. “Los caminos de la criminalización: Mujeres trans y la experiencia de la cárcel”. Tesis de maestría, Universidad Andina Simón Bolívar.
Spade, Dean. 2015 [2011]. Una vida normal: violencia administrativa, políticas trans críticas y los límites del derecho. Traducido por Marla Enguix Tercero. Barcelona: Ediciones Bellatera
Wacquant, Loïc. 2004. Las Cárceles de la Miseria. Madrid: Alianza Editorial
Wacquant, Loïc . 2007. “‘La cárcel es una institución fuera de la ley’ Conversación acerca
de las cárceles de la miseria”. Urvio. Revista Latinoamericana de seguridad ciudadana.
1:153-160.
Wacquant, Loïc. 2009. Punishing the Poor: The Neoliberal Government of Social Insecurity. Durham y Londres: Duke University Press.
Wacquant, Loïc. 2013. Tres pasos hacia una antropología histórica del neoliberalismo real. https://herramienta.com.ar/articulo.php?id=1664
Wittig, Monique. 1992. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Madrid: