Porta do não retorno
Natasha Omokhodion-Banda
| Zâmbia |
agosto de 2020
traduzido por Rane Souza
Ela cantarola. As vibrações de sua voz reverberam contra as paredes da sala, dando lugar a um novo sol. A penumbra na parede revela uma mobília familiar, enquanto a luz azul enche lentamente a sala. Seu espírito se une à alma no fundo de seu ser, fazendo com que flutuem como um só, incertos quanto ao futuro após esse dia.
A mão fina enluvada por pele se projeta de dentro para fora contra as paredes internas da barriga negra aveludada. Listras percorrem o monte escuro, cada uma delas contando a história sobre quem elas pertencem. Sente o bebê mover-se violentamente, fazendo com que espelhe a diminuta mão com a sua.
— Vá dormir, 19! — diz ela.
— Não consigo — responde 19.
— Você vai nos causar problemas! Precisa estar pronto e bem descansado para hoje.
— Mas não quero ir.
— Você precisa ir. É a ordem da vida.
— Me conte a história de novo?
— Qual?
— Por favor, me conte a história, M.
Ela olha para o teto estéril. Sua frieza cromada a encara de volta. Seus olhos estreitam-se muito, e ela geme. A barriga se contrai em uma bola apertada. Respira fundo, rapidamente, até relaxar de novo. Faz o que sua primeira doula lhe disse. Para derrotar a dor, começa a narrar a história. Fala da mesma maneira que falou com todos que estavam aqui antes de 19. Pelo seu espírito.
— Tudo começou há muitos anos, quando começaram os sussurros do Ocidente. Murmúrios de escândalo se espalharam como fogo no mato, histórias de bebês sendo gestados e vendidos em fábricas em Enugu. O mundo havia mudado tanto durante a era da informação que a conveniência e a gratificação imediata se alimentavam de um demônio vivo e voluptuoso que apenas consumia e destruía. Com um toque na tela, as pessoas compravam e vendiam crianças. As mulheres mais pobres, que tinham apenas sua fertilidade para vender, começaram a imigrar.
No norte, meu povo fez longas e árduas jornadas através de florestas, montanhas e vastas cidades a fim de fugir para a Europa. Feras e clima severo os devorariam se a fome não os vencesse. Após a extrema dificuldade da viagem por terra, iriam para o grande mar azul, vinte em um minúsculo barco inflável. Vomitando uns sobre os outros, defecando à vista dos céus. Lutando e com medo, não tinham um capitão para liderá-los. Muitos se perderiam em sepulturas cheias de sal e água.
Pessoas com feições desesperadas nas telas da televisão gritavam avisos. Vozes indiferentes no rádio relatavam essas coisas, mas ninguém fazia nada. As pessoas estavam sendo negociadas como escravas na costa da Líbia, séculos depois da abolição do tráfico de escravizados. No sul, o continente sofria. Médicos, engenheiros e professores partiam para áreas mais ecológicas até que não restasse ninguém para cuidar da casa. Nossa população cresceu ferozmente, mas nossas indústrias sofreram. Nossos sistemas de água ficaram turvos com resíduos sintéticos que nunca se dissolveriam. Nossos governos eram corruptos. Alguns pegavam empréstimos até que não pudessem mais pagar. Tudo isso continuou nos atormentando até que nuvens escuras começaram a visitar nosso continente...
— Então, o que aconteceu?
— Mas você já ouviu essa história, 19.
— Sim, mas você nunca termina, M.
— Os chineses já haviam estabelecido fortes laços na África, construindo ferrovias, arranha-céus, escolas e hospitais. Aprenderam nossas línguas e se tornaram como irmãos para nós. Portanto, era apenas uma questão de tempo até que se apresentassem e propusessem uma maneira de resolver nossos problemas de imigração e endividamento.
— O que eles nos prometeram, M?
— Eles se ofereceram para criar um imenso programa conjunto de fertilidade, com a condição de formarmos um estado pan-africano unido, que se tornaria a nação unida de Mbiguli.
— Mbiguli?
— Sim. Juntos, criamos uma raça de super-soldados, os Akahn, feitos com uma cuidadosa seleção genética. O novo crescimento econômico de Mbiguli e a lealdade à China mudaram a ordem mundial. As lideranças do Ocidente não gostaram disso. Pela primeira vez na história moderna, os africanos estavam liderando o mundo. O comércio global foi afetado. Nossos médicos e professores voltaram, e nos tornamos cada vez mais autossuficientes. Por ter perdido acesso aos recursos provenientes de Mbiguli, o Ocidente decidiu declarar guerra contra nós. No entanto, não durou muito, porque...
— Por quê, M?
— Nós…
— Nós o quê, M?
— No meio da noite mais fria e durante o dia mais quente, lançamos bombas silenciosas e invisíveis sobre os continentes deles. Algo vil e irrevogável.
— Eles morreram?
— Na verdade, não, 19...
— Então, o que aconteceu, M?
— Não sei, 19.
Christopher olha para sua esposa, Kate. Seus cabelos ruivos estão colados na testa de porcelana, as bochechas coradas ao sol baixo da savana. Pérolas de suor crescem ao longo do nariz perfeito. A grama alta e dourada cede ao vento, curvando-se para a esquerda e depois para a direita, como se estivesse em transe. Acácias e jacarandás, corpulentas, espinhosas, mas certas, oferecem camuflagem aos poucos antílopes que ele consegue ver.
Ela retorce as mãos, os nós dos dedos pálidos. Ele envolve as mãos dela nas suas. A aba de lona do dossel do Land Rover bate nas laterais da van conversível. A ideia de um veículo movido a diesel parecia nostálgica nos fascinantes relatos de seu agente virtual, mas não tanto, na vida real.
Um grupo de zebras grandes aparece atrás das árvores, galopando ao lado do carro, sacudindo a terra, fazendo a poeira subir dos cascos. Christopher pousa o braço, de maneira protetora, em volta dos ombros de sua esposa. O motorista de Mbiguli, elegantemente vestido, sorri com orgulho ao explicar que todos estão seguros. Nenhum animal pode se aproximar deles, graças à infraestrutura InvisiWallTM. “É impossível”, diz ele, enfatizando o ‘p’ com o sotaque que revela que o falante é nativo de um país de língua portuguesa.
Sua voz se eleva acima do vento enquanto narra a história desta parte de Mbiguli.
— No passado a região era dividida entre a Zâmbia, a Tanzânia e a República Democrática do Congo. Este estreito fica na região outrora conhecida como Lago Tanganica. É a capital do turismo desta região. Na Zâmbia, havia um resort na Baía de Kasaba, construído para o presidente do país na década de 1980. Com praias tão puras, a nova Nação de Mbiguli decidiu estender esse maravilhoso recurso, criando um estreito que se estende do Oceano Índico, ao longo da costa da Tanzânia.
Seguem em frente, deixando a savana para trás. Gramados aparados bem rente ao solo abrem o caminho para a entrada verdejante e tropical. Ramos exuberantes de densas folhas verdes acima de impressionantes plantas suculentas formam impressionantes cascatas de folhas. O casal arqueia o pescoço para trás para ver a altura a que as folhas chegam com a expectativa de que um Golias passe por entre as palmeiras afastadas. Os pássaros gorjeiam e voam entre as árvores, atentos aos recém-chegados. O veículo passa pela boca de um portão aberto de madeira Mukwa e entra em uma ponte de seixos brancos suspensa no ar, adornada por buganvílias nas cores fúcsia e laranja. Guardiões altos e de peito largo, os Akahn, enfileiravam-se em cada lado da ponte, com os cabelos negros amarrados para trás em rabos de cavalo. Olham para baixo, seguindo o veículo em movimento com os olhos. Pequenos arrepios sobem ao longo do antebraço de Christopher, enquanto a mão úmida de Kate se entrelaça na dele.
A ponte percorre centenas de metros com o mar coberto de branco batendo lá embaixo. Pavões enormes abrem as asas para lhes dar as boas-vindas ao final do túnel floral. Christopher toma um gole de sua água engarrafada, lutando para engolir. Percebe que os ombros estreitos de Kate ainda estão tensos.
O hotel é opulento com chalés elevados suspensos no céu azul. Os baobás gigantescos possuem restaurantes em diferentes andares, com tubos de elevação subindo e descendo pelo centro, assim como à esquerda e à direita ao longo dos galhos, como um sistema nervoso central.
Dentro do salão principal, no térreo, são recebidos por rajadas frias e silenciosas de ar e notas divertidas do milenar jazz africano. Anfitriões holográficos vestidos com togas cor de cobalto os recebem, fazendo grandes mesuras, lembrando, assim, a hospitalidade encontrada apenas em filmes históricos. Amarula é servida no gelo, juntamente com uma variedade de comidinhas: sementes de abóbora assadas, chikanda1Chikanda, também conhecida como "kinaka" ou "kikanda", é um petisco muito apreciado na Zâmbia. É feito a partir da combinação de tubérculos de orquídeas, amendoim moído e pimentas. (Fonte: http://www.bbc.com/earth/story/20161123-there-is-a-snack-food-that-is-mostly-made-out-of-orchid - acessado em 4 de agosto de 2020) (N. da T.), banana da terra, costela de impala defumada, fatias de melancia e manga. Panos com resfriamento por nitrogênio são fornecidos por robôs ovais com rodas. Christopher e Kate gostam da sensação das flanelas na parte de trás do pescoço. Arranjos de flores alinhados simetricamente explodem em cores, fazendo o casal respirar profundamente. Não sentem cheiro de nada.
Depois de os dois se refrescarem, os carregadores chegam para ajudá-los com sua bagagem.
Sobem para o quarto através dos tubos do baobá. O trajeto é lento de propósito para que apreciem a beleza do estreito. A água cor de safira lá embaixo faz os raios do sol dançarem, batendo contra o branco puro da praia. Chegam ao andar Makumbi, e o túnel os leva à esquerda em direção ao quarto. Corredores transparentes no nível das nuvens assustam o casal, mas são tranquilizados pelas setas índigo de neon no chão.
Ao se aproximarem do quarto, as camareiras desaparecem de vista. Christopher pega seu binóculo, ainda espantado ao pensar que este era um país sem litoral. Através de suas lentes, as magníficas ilhas que pontilham a baía se aproximam. Fauna e flora exóticas abundam em cada uma delas, projetadas para criar um ecossistema único, oferecendo uma variedade para os convidados.
Uma girafa geneticamente modificada os recebe na varanda. Seu olho direito olha curiosamente para o casal, enchendo a maior parte da janela. Ela faz grandes movimentos circulares para mastigar folhas verdes, respira com força na direção deles. Sua esposa vai em direção ao animal como se estivesse magnetizada e sorri. Por um momento, Christopher sente que, finalmente, tem a aprovação dela.
Uma cerca virtual acende dando aviso: é a deixa para se afastar. Uma águia-pescadora ressoa três vezes, e eles se viram para o holograma de contornos suaves que aparece no meio do quarto.
— Senhor e Senhora Hanover. Bem-vindos à grrrande terra de Mbiguli! — Ele abre os braços para mostrar o tamanho. Se inclina muito para fazer uma mesura.
— Obrigado — Christopher responde.
— Sejam bem-vindos ao Estreito — continua ele em um tom de barítono profundo. — Fundado em 2030 pelo Conselho de Ministros do Turismo. Vocês estão hospedados no andar de maior prestígio, o Makumbi, em homenagem às magníficas nuvens que o circundam. Levamos vocês o mais perto possível do céu que podemos. — Ele pisca, ri da própria piada. Kate permanece calada.
— Obrigado, senhor — diz Christopher no lugar da esposa.
— Me chame de senhor Bwalya.
— Obrigado... ahm... senhor Bwalya. Quanto tempo acha que vai demorar até ...?
— Ah, não se preocupe, senhor. De acordo com nosso leitor obstétrico de inteligência artificial, sua hospedeira está mostrando todos os sinais ideais para o parto nas próximas 24 horas.
— Será que ela... lemb...?
— Não, Sr. Hanover. Nossas hospedeiras não têm conflitos internos ou sentimentos de dúvida ou separação. Tomamos medidas cuidadosas para garantir que também não tenham lembranças da gravidez. Uma série de ondas eletromagnéticas cuida disso assim que a criança sai do ventre. Na verdade, sua hospedeira, em particular, é uma das nossas melhores.
Do outro lado da propriedade, em um bangalô branco no estilo holandês do Cabo, uma Alma entra neste mundo. O peito de Malaika está arfando. O Apanhador de Almas, um médico sem boca de jaleco vermelho e preto, está em pé à cabeceira da cama. Desliza os dedos entre as coxas dela, fazendo com que a mulher empurre o bebê. Seus punhos se apertam. Explosões agudas escapam de sua boca. Seus dentes rangem uns contra os outros.
Sente o familiar anel de fogo na base de sua anatomia. Está formando a coroa, o topo da cabeça do bebê empurrando para fora. Dá um último grunhido animal, e o bebê sai com um chacoalhão apressado. O jorro sedoso e quente flui. Uma rotina que ela conhece tão bem. Outro empurrão e, com ele, o último pedaço de carne e vasos que conectaram o bebê a ela por nove meses é expelido. Pronto. Sua última Alma é liberada.
Seu comportamento é angelical, mas seu choro, torturante. Malaika vira a cabeça e fecha os olhos. Exausta, tenta ignorar os lamentos da criança. Se pergunta como seria ter a pele molhada do bebê contra o peito. Para sentir seu coração batendo contra o dela. Para cheirar sua cabeça coberta de branco. Seus seios reagem ao choro, começam a inchar.
O Apanhador de Almas verifica os membros, dedos e órgãos genitais da criança. O sexo é o único fator ainda predeterminado pelas próprias Almas. Malaika procura satisfação nos olhos do Apanhador de Almas, mas os olhos piscam para ela. Entregue à enfermeira-chefe, 19 é levado embora, como sempre, pela porta sem volta. Ela sabe que nunca mais verá a brancura da pele do bebê contra a nitidez de sua cabeça de cenoura.
As emoções a jogam em um turbilhão de lembranças. Sua mente rememora um dia no mercado, rindo com a irmã, fazendo música com as mãos na poeira vermelha de Serenje. Ela se prepara para o choque quando o Apanhador de Almas e a enfermeira-chefe saem da pequena sala de parto. A luz ultravioleta pulsa através dela em dois flashes e ela desmaia. Pela décima nona vez.
Malaika volta à vida. Está de volta ao quarto. Limpa, vestida e até com óleo aplicado à pele. Se prepara para não se lembrar. Mas, por alguma razão, ela se lembra.
Batendo palmas no mercado com Elida. Uma mistura de fumaça do carvão de Malasha e peixe seco fervendo. Miragens derretidas de telhados de zinco quebrados. A cena parece ter uma tela de fumaça azul, como os filtros de fotos instantâneas do iPhone do papai.
Papai. Altaneiro, ombros largos, pele da cor da meia-noite. O cheiro do mar sempre se arrastando atrás dele. Tecidos e especiarias caindo de sua bolsa de plástico. Entonações estrangeiras revestindo seu parco inglês francófono. Suas histórias de uma terra distante, de portas sem volta, se desenrolavam todas as noites após passar tempo em seu tapete de oração tecido à mão. As solas rachadas dos pés voltadas para o céu, o rosto voltado para baixo em grande fervor. A razão pela qual ela era diferente.
Ela se lembra.
Os sons cacofônicos da kalindula2Kalindula é um tipo de baixo que dá nome a um estilo musical muito popular na região centro-sul da África. A Kalindula foi criada no final do século XX e faz muito sucesso na Zâmbia, no Maláui e no Zimbábue. (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Kalindula - acessado em 7 de agosto de 2020) (N. da T) e da música hip-hop retumbam de barracas multicoloridas. Mulheres em banquinhos de madeira entalhada, trançando cabeças apinhadas de cabelos. Clientes fiéis em esteiras de bambu com bebês de cotovelos acinzentados comendo goiabas. Panelas amassadas com óleo em turbilhão prontas para transformar o conteúdo de pratos de plástico verde e branco. Salsichas húngaras gordas em exibição, recortes ao longo do invólucro, cobertas por moscas pretas, tão famintas quanto humanos.
Ela se lembra.
Uma bicicleta com uma grande carcaça de televisão amarrada com cordas de borracha passa pela via. Em uma motocicleta, uma mulher vestida de maneira extravagante com roupas tradicionais para um casamento passa voando na direção oposta. A pele da moça está acinzentada por causa do pó de talco, e suas sobrancelhas são desenhadas como o símbolo da Nike de cabeça para baixo. A peruca dela, de um modo estranho, fica no centro da testa. Malaika se lembra de estar rindo do espetáculo com Edina. Papai anda em sua direção. Seu agbada3 Agbada é um termo em iorubá usado para designar uma túnica de mangas largas usada por homens em boa parte da África ocidental e em algumas partes do norte da África (...) A vestimenta foi batizada com diferentes nomes em grupos étnicos e línguas variados em que foi adotada. O termo original é babban riga usado pelo povo haúça. (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Agbada - acessado em 7 de Agosto de 2020) (N. da T.) branco o deixa extraordinariamente alto.
Como os gafanhotos da Bíblia da mamãe, uma sombra no céu vem rolando na direção delas. Um vento suave anuncia sua chegada. Todo mundo congela como personagens de um livro de imagens. As nuvens escuras se dissipam em minúsculos drones. As máquinas-insetos vêm até eles. Uma na direção dela, outra na direção de Edina. Pairam baixas e estáveis. Em seguida, uma varredura de luz vermelha. Para cima e para baixo em seu corpo, parando em seu útero. Ali, uma luz verde se acende. Cálculos com caracteres estrangeiros surgem no ar. Seu rosto é capturado, e ela também.
Uma sequência de vozes emana de seu útero. Questionando, chorando, rindo, ela pode ouvir todas elas, as Almas que ela liberou. Perguntas de ex-inquilinos que uma vez reivindicaram morar em seu ser, de quem ela já cobrou sua tarifa.
Senta-se e põe os pés no chão frio. Com as mãos na cabeça, tenta bloquear as vozes, mas elas se espalham no torso, e uma luz brilhante irradia de seu âmago. Não está mais ciente de seu ambiente porque está unificada com a força que existe dentro dela.
Vai até a porta, e as Almas ordenam que ela a abra. Porta após porta destravam em sequência enquanto caminha pelo corredor. Dezenas de mulheres emergem de seus quartos, todas em transe. Seus uniformes de vestidos de maternidade chitenge4Quitengue (Kitenge) ou chitengue (chitenge) é um tecido da África Oriental, da África Ocidental e da África Central semelhante ao sarongue, geralmente, usado por mulheres e enrolado no peito ou na cintura, sobre a cabeça como um lenço na cabeça ou como um estilingue de bebê. Quitengues são pedaços de tecido coloridos. Na área costeira do Quênia e na Tanzânia, os quitengues costumam ter frases em suaíli escritas. (...) Os quitengues são semelhantes a cangas e quicois, mas são de um tecido mais grosso e têm uma borda em apenas um lado comprido. Quênia, Uganda, Tanzânia, Sudão, Nigéria, Camarões, Gana, Senegal, Libéria, Ruanda e República Democrática do Congo são alguns dos países africanos onde o quitengue é usado. No Maláui, Namíbia e Zâmbia, quitengue é conhecido como chitengue. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Quitengue - acessado em 7 de agosto de 2020) (N. da T.) e meias brancas fazem com que pareçam presidiárias. As vozes nas barrigas se juntam às de Malaika. Na abóboda, os Akahn gritam uns com os outros, o pânico em suas vozes estridentes porque não foram treinados para agir contra os recursos. As mulheres, possuídas, seguem em frente.
Malaika irrompe na abóboda e encontra o painel de controle. O rosto do senhor Bwalya, programado para uma hospitalidade calorosa, aparece, dando-lhe um aviso sorridente. Encontra um mostrador que distorce sua imagem suplicante – grande, pequena, esticada – até que ele espiralize para baixo como água em um ralo e, finalmente, para o nada. Manipula a estação de controle com a intimidade de quem sempre soube operar o sistema.
Luzes vermelhas e alarmes de sirene soam por todo o hotel. A terra treme e sons estrondosos reverberam em seguida. Sem acreditar no que via, os desorientados Akahn olham furiosos para os monitores de jogo que mostram animais colossais correndo em direção a locais protegidos, esmagando vans de turismo e turistas em movimento. A atenção deles é atraída pelo som das trombetas.
Casamento de viúva, chuva e sol ao mesmo tempo: acontece ali toda vez que uma criança nasce. O tépido horizonte laranja deixa entrar raios de esperança. Christopher olha para Kate, sua esposa. Um nascimento, o elixir da vida. Ele acaricia seus cabelos ruivos.
19 é levado até o quarto. Tão perfeito. Tão pálido.
Christopher, tremendo, recebe o bebê. Seu bebê. Um brilho quente preenche seu corpo e ilumina o rosto. Kate está diante dele, os pés descalços plantados no chão de mármore. Seus braços se dobram em um involucro perto de seu peito. O canto da águia-pescadora chama sua atenção para o centro do quarto.
Um holograma aparece mais uma vez. Para sua surpresa, a imagem de uma mulher alta e surpreendentemente negra enche a sala. A energia dela é tão forte que o filho de Christopher se contorce em seus braços. Seu instinto diz a ele para chamar os seguranças, mas sua consciência lhe diz que não o faça. O bebê começa a gritar, seu rosto mudando da cor de giz para escarlate.
A figura paira, instável e piscando com chuviscos. Mais silhuetas aparecem atrás dela. Mulheres de todas as formas e tamanhos, barrigas redondas, vestidas com tecidos estampados. Elas olham para o bebê nos braços de Christopher. Malaika tira os olhos do pacotinho que se contorce e os fixa em Christopher.
— 19, meu filho. Fica quietinho.
Silêncio.
revisão de tradução
Petê Rissatti
Natasha Omokhodion-Kalulu Banda | Zâmbia |
É zambiana com ascendência nigeriana e jamaicana. Mora em Lusaka. É casada e tem três filhos. Natasha é apaixonada pela cena literária em ascensão na África e gosta do poder de contar histórias. Seus escritos foram publicados na antologia de publicação eletrônica da African Women Writers (Afriwowri) Different Shades of a Feminine Mind, a antologia The Budding Writer, organizada pela Associação de escritoras zambianas (2017), e seu trabalho teve destaque no AfricanWriter.com com o conto “To Hair is Human, To Forgive is Design” (2018). Seu trabalho também foi publicado em Short Story Day Africa – Hotel Africa (2018) e o manuscrito de seu romance recém-publicado No Be From Hia foi selecionado como finalista do Graywolf Africa Prize 2019.